Demorou praticamente um mês para
eu me adaptar às novas condições
impostas pela pandemia.
Trabalho remoto, atividades domésticas, e uma boa dose
de reeducação intelectual para dar suporte ao estado emocional diante da
quarentena. Levei um bom tempo para me acostumar, mas já posso dizer que meu
ritmo voltou ao normal. Incluindo as leituras. Bola pra frente.
Em um momento político altamente
polarizado, não vi leitura melhor do que a proposta por este livro. E aí temos
mais um trunfo do poder de um título, que literalmente vendeu um peixe que eu
estava ansioso para comprar há alguns meses. Por que nós temos certeza de certas
coisas, mesmo que evidências nos indiquem que elas não são tão confiáveis? Como
funciona nosso cérebro neste quesito? Quando nossas crenças são postas à dúvida
por evidências, o que nos faz decidir por uma delas? Com estas dúvidas, fui ver
o que o neurologista Robert Burton tem a nos contar. E o fato de ser um
neurologista parece dizer muito sobre o caminho que o livro pretende tomar.
Tenho um especial interesse quando assuntos desta natureza são encarados sob a
ótica da biologia e evolução. E neste quesito, meu entusiasmo foi ainda maior.
Confesso que o livro tem alguma
dificuldade de engrenar. O autor não tem uma escrita lá muito suave para
construir um texto bem coeso e com uma cadência que instiga você a continuar
lendo. Confesso que parei muitas vezes, retornei hora e meia e fiz hiatos
incomuns para uma obra relativamente pequena. Na introdução, pelo menos, ele
fez o dever de casa. Ele nos introduz ao conceito sensação de saber, que para mim fez toda a diferença na forma de
como enxergar o livro. Trocar nosso já firmado conceito de "saber" pela
ideia de que nossa convicção ou certeza de algo é mais do que só uma memória
sobre determinado assunto, sendo acompanhada por uma sensação, um estado
emocional que lhe confere segurança no que você sabe. E para mostrar como esta
diferença, ele nos brinda com a brincadeira da pipa, que é a parte mais
brilhante e criativa da obra.
Mensagem passada, é hora de
explicar um pouco sobre como possivelmente surge essa sensação. É neste momento
que encontramos o neurocientista, que explora a estrutura biológica do cérebro,
anatomia cerebral e uma boa dose de casos e experiências, para nortear o leitor
sobre o que se tem de informação a respeito do que pode ser a origem da
convicção. É certo que dados médicos e estudos científicos sobre este ponto em
específico são relativamente poucos, e eu confesso que esperava encontrar mais
sobre isto. Ao olhar algumas citações, esperava que houvesse mais bibliografia
para basear o texto do autor, mas parece que o assunto é relativamente reduzido
mesmo.
Neste momento, o autor precisa
recorrer a analogias para tentar explicar como ele acredita que a sensação se
estabeleça. Usando exemplos ligados a teoria das redes e inclusive reuniões de
empresas, Burton faz um bom esforço em tentar sugerir como ele imagina que a
sensação de saber finalmente apareça, quando nosso cérebro juntas as
informações obtidas e tenta processar o assunto. Recorre inclusive ao
emergentismo para tentar dar uma idea da natureza não reducionista do
surgimento da convicção. Não que seus exemplos sejam fracos, ou talvez não tão
bem pensados, mas o assunto realmente é árido, e no final você fica com a clara
sensação de que não avançamos muito neste ponto. Em contrapartida, os exemplos
que ele dá para o surgimento destas sensações são muito pertinentes, e mais de
uma vez eu me peguei relembrando de coisas que ele faz alusão. É quase
impossível não se identificar com sua história sobre o "saber o
endereço".
Tratando de forma clássica das
falhas do cérebro na interpretação das informações que recebemos, o autor
engrena melhor sua obra na última parte, quando realmente explora as causas da
sensação, depois de descrevê-las e imaginar seus processos. É um momento bem
mais atraente do livro, que no final deixa um recado bem claro: a sensação de saber não é ligada ao racional.
Provavelmente está vinculada a algum componente genético (e seu exemplo de
jogadores de pôquer ilustra bem isso), e pode ser mais ou menos treinada. Nosso
cérebro, quando está predisposto a isso, consegue manejar bem as informações
racionais que recebemos e com base nela construir a sensação de saber, que nos
dá a certeza sobre o assunto. Desta forma, é possível explicar por que é
impossível dialogar com certas pessoas que tem uma visão ou crença muito bem fincada,
e que simplesmente ignoram qualquer tipo de evidência em contrário que seja
apresentada.
Publicado pela Editora Blucher, o
livro é curto, com menos de trezentas páginas. Folhas amareladas e foscas com
tipografia elegante, e praticamente sem ilustrações. Suas dimensões a deixam
confortável para uma leitura casual e ligeira. Apesar de uma ligeira frustração
em termos de dados e sobre o estilo da escrita, devo dizer que é uma obra
bastante esclarecedora. Quando vemos opiniões radicais quase irremovíveis, e
ataques incessantes à ciência, a leitura desta obra nos dá uma esclarecedora
explicação do porquê de tanta cegueira e tamanha insistência nestes pensamentos.
E nos brinda com uma confortável sensação
de saber.
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