terça-feira, 5 de maio de 2020

Sobre Ter Certeza - como a neurociência explica a convicção


Demorou praticamente um mês para eu me adaptar  às novas condições impostas pela pandemia. 

Trabalho remoto, atividades domésticas, e uma boa dose de reeducação intelectual para dar suporte ao estado emocional diante da quarentena. Levei um bom tempo para me acostumar, mas já posso dizer que meu ritmo voltou ao normal. Incluindo as leituras. Bola pra frente.

Em um momento político altamente polarizado, não vi leitura melhor do que a proposta por este livro. E aí temos mais um trunfo do poder de um título, que literalmente vendeu um peixe que eu estava ansioso para comprar há alguns meses. Por que nós temos certeza de certas coisas, mesmo que evidências nos indiquem que elas não são tão confiáveis? Como funciona nosso cérebro neste quesito? Quando nossas crenças são postas à dúvida por evidências, o que nos faz decidir por uma delas? Com estas dúvidas, fui ver o que o neurologista Robert Burton tem a nos contar. E o fato de ser um neurologista parece dizer muito sobre o caminho que o livro pretende tomar. Tenho um especial interesse quando assuntos desta natureza são encarados sob a ótica da biologia e evolução. E neste quesito, meu entusiasmo foi ainda maior.

Confesso que o livro tem alguma dificuldade de engrenar. O autor não tem uma escrita lá muito suave para construir um texto bem coeso e com uma cadência que instiga você a continuar lendo. Confesso que parei muitas vezes, retornei hora e meia e fiz hiatos incomuns para uma obra relativamente pequena. Na introdução, pelo menos, ele fez o dever de casa. Ele nos introduz ao conceito sensação de saber, que para mim fez toda a diferença na forma de como enxergar o livro. Trocar nosso já firmado conceito de "saber" pela ideia de que nossa convicção ou certeza de algo é mais do que só uma memória sobre determinado assunto, sendo acompanhada por uma sensação, um estado emocional que lhe confere segurança no que você sabe. E para mostrar como esta diferença, ele nos brinda com a brincadeira da pipa, que é a parte mais brilhante e criativa da obra.

Mensagem passada, é hora de explicar um pouco sobre como possivelmente surge essa sensação. É neste momento que encontramos o neurocientista, que explora a estrutura biológica do cérebro, anatomia cerebral e uma boa dose de casos e experiências, para nortear o leitor sobre o que se tem de informação a respeito do que pode ser a origem da convicção. É certo que dados médicos e estudos científicos sobre este ponto em específico são relativamente poucos, e eu confesso que esperava encontrar mais sobre isto. Ao olhar algumas citações, esperava que houvesse mais bibliografia para basear o texto do autor, mas parece que o assunto é relativamente reduzido mesmo.

Neste momento, o autor precisa recorrer a analogias para tentar explicar como ele acredita que a sensação se estabeleça. Usando exemplos ligados a teoria das redes e inclusive reuniões de empresas, Burton faz um bom esforço em tentar sugerir como ele imagina que a sensação de saber finalmente apareça, quando nosso cérebro juntas as informações obtidas e tenta processar o assunto. Recorre inclusive ao emergentismo para tentar dar uma idea da natureza não reducionista do surgimento da convicção. Não que seus exemplos sejam fracos, ou talvez não tão bem pensados, mas o assunto realmente é árido, e no final você fica com a clara sensação de que não avançamos muito neste ponto. Em contrapartida, os exemplos que ele dá para o surgimento destas sensações são muito pertinentes, e mais de uma vez eu me peguei relembrando de coisas que ele faz alusão. É quase impossível não se identificar com sua história sobre o "saber o endereço".

Tratando de forma clássica das falhas do cérebro na interpretação das informações que recebemos, o autor engrena melhor sua obra na última parte, quando realmente explora as causas da sensação, depois de descrevê-las e imaginar seus processos. É um momento bem mais atraente do livro, que no final deixa um recado bem claro: a sensação de saber não é ligada ao racional. Provavelmente está vinculada a algum componente genético (e seu exemplo de jogadores de pôquer ilustra bem isso), e pode ser mais ou menos treinada. Nosso cérebro, quando está predisposto a isso, consegue manejar bem as informações racionais que recebemos e com base nela construir a sensação de saber, que nos dá a certeza sobre o assunto. Desta forma, é possível explicar por que é impossível dialogar com certas pessoas que tem uma visão ou crença muito bem fincada, e que simplesmente ignoram qualquer tipo de evidência em contrário que seja apresentada. 

Publicado pela Editora Blucher, o livro é curto, com menos de trezentas páginas. Folhas amareladas e foscas com tipografia elegante, e praticamente sem ilustrações. Suas dimensões a deixam confortável para uma leitura casual e ligeira. Apesar de uma ligeira frustração em termos de dados e sobre o estilo da escrita, devo dizer que é uma obra bastante esclarecedora. Quando vemos opiniões radicais quase irremovíveis, e ataques incessantes à ciência, a leitura desta obra nos dá uma esclarecedora explicação do porquê de tanta cegueira e tamanha insistência nestes pensamentos. E nos brinda com uma confortável sensação de saber


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