sexta-feira, 9 de abril de 2021

Receita federal sugere taxar livros porque "pobres não leem"


 

Como é um blog de livros, não posso deixar de comentar sobre essa... esse... como dizer... ah, não sei dizer. Não sei as palavras. Afinal, pobre não lê livro.

Essa notícia digna de um autêntico chapeleiro louco foi veiculada em um bocado de noticiários e sites, um dos quais eu coloco a referência no finzinho do texto. As reações foram tão imediatas e diretas, que pensei um pouco se deveria escrever algo sobre isso. Pensei muito, aliás. Se não estaria chovendo no molhado, já que muita gente falou praticamente tudo que se poderia falar depois de uma declaração bizarra dessas. Mas depois, lembrei do objetivo desse blog, e justifiquei esse texto, justamente no começo dessa postagem.

Livros não didáticos são caros. Muito caros. E falo dos livros bons. Não dos best-sellers que tem milhares de tiragens e são aqueles que dão um bom retorno às editoras. Esses justamente que tem resenhas super elogiosas e terceirizadas, e que na maioria das vezes vendem uma história muito inferior ao próprio conteúdo. Mas vou deixar pra comentar isso em outra oportunidade. Minha briga agora é com a taxação de leituras.

Mesmo sem taxas, um brasileiro médio não tem interesse por ler. E isso reduz a vendagem, que por sua vez reduz mais ainda a atenção de editoras para livros que são realmente bons. Só que os livros não didáticos, informativos, são o passo seguinte para instigar o gosto por leitura, ou pelo menos o interesse por ler. E o gosto da leitura, regra geral, está atrelada ao interesse por estudo. E educação, como já dizia Paul Morland na resenha anterior (clique AQUI), é a mola para a qualidade de vida. Quanto maior o estudo, maior a renda de quem estudou. Ponto.

A lógica errada da Receita é que, se pobres não leem, está tudo bem então. Já que quem lê é rico, vamos cobrar deles para continuarem lendo. Eu fiquei ainda mais indignado com a escrita do texto, destacada no jornal:

"De acordo com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2019 (POF), famílias com renda de até 2 salários mínimos não consomem livros não-didáticos e a maior parte desses livros é consumida pelas famílias com renda superior a 10 salários mínimos. Neste sentido, dada a escassez dos recursos públicos, a tributação dos livros permitirá que o dinheiro arrecadado possa ser objetivo de políticas focalizadas"

Mas o que diabos são políticas focalizadas? Na verdade, é uma expressão que serva para qualquer coisa e não diz nada, ao mesmo tempo.

É engraçado que esse raciocínio torpe faz você acreditar que o motivo pelo qual pessoas com baixo poder aquisitivo não leem é porque eles simplesmente não se importam com leitura, e isso é tratado como a coisa mais natural do mundo.

Existem basicamente dois motivos pelos quais a maioria das famílias não se interessam por leitura. A primeira é que elas não foram ensinados a se interessar pelo hábito de ler. E isso não é culpa delas. Famílias que sobrevivem com dois salários mínimos ao mês não podem se dar ao luxo de fazer nada que não esteja diretamente ligada a própria sobrevivência. Vindas de um ensino fundamental e médio precários, defasados, sucateados, com professores miseravelmente remunerados, com jornadas de trabalho extenuantes, como se pode pensar que elas vão se interessar por leitura quando elas precisam priorizar o pão de cada dia? E a segunda é simplesmente porque LIVRO É CARO! Deveria ser ÓBVIO que famílias com renda de dois salários não se sentem confortáveis em pegar cada centavo suado que ganham para investir em livros não didáticos (e os próprios livros didáticos já são absurdamente caros), quando elas precisam justamente deste dinheiro para COMER!

E o pior de tudo é que, pra pensar assim, o pessoal da Receita também não deve ter o costume de ler. Aumentar preço de livro não vai fazer com que magicamente todo mundo continue comprando a mesma quantidade de obras, só que mais caro, engordando os cofres públicos. É muito mais provável que o consumo de livros DIMINUA entre as pessoas que ganham mais de 10 salários mínimos. Não estamos falando de gasolina, que, querendo ou não, muita gente é obrigada a consumir para continuar trabalhando. Livros não didáticos são comprados por gosto. Se o gosto se torna caro, é mais provável que seu hábito mude, ou que o leitor fique bem mais seletivo na hora de comprar, reduzindo o consumo, e por consequência, a arrecadação para o governo. Todo mundo sai perdendo.

Sucatear educação e ciência no Brasil parece não ser suficiente. Tem de garantir que qualquer tipo de interesse por livros seja eliminada também. Eu tenho quase certeza que no congresso essa tosquice deve ser barrada. Quase certeza. E, se não for, diga adeus a este blog.

Ah, ia me esquecendo. O link da reportagem:

https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/economia/2021/04/receita-defende-taxacao-de-livros-sob-argumento-de-que-pobres-nao-leem.html

quarta-feira, 7 de abril de 2021

A Maré Humana - a fantástica história das mudanças demográficas e migrações que fizeram e desfizeram nações, continentes e impérios

 


Mais um livro cujo subtítulo termina por fazer você decidir entre comprar e não comprar a obra. Demorou um pouco para eu entender a razão da escolha do título propriamente dito. E foi brilhante. Comparar a população humana (ou qualquer outra que seja) a uma maré é de uma sensibilidade quase poética. A maré aumenta e diminui ao sabor de influências externas, como a lua, e afeta tudo ao seu redor, ajustando-se às irregularidades da costa a qual banha. E populações se comportam justamente desta maneira. Agora, o que temos a saber de populações humanas?

O livro começa destacando constatações importantes para o entendimento da obra, como um todo. Muito do que temos de dados sobre as populações humanas são muito, muito recentes. O conceito de censo ou levantamentos populacionais nos países não tem mais do que uns duzentos anos, e o autor nos adverte justamente para nos avisar de que descrever essas movimentações humanas ocorridas há séculos atrás é um esforço muito mais especulativo (mesmo que baseado em certas evidências) e menos preciso do que no mundo moderno. E neste sentido, ele evita entrar nos detalhes. Portanto, não espere um mapa continental sobre as movimentações humanas a cada século, desde o surgimento da nossa espécie.

Não obstante, o trunfo do autor é sua capacidade de identificar os principais fatores que foram responsáveis pelos crescimentos, decaimentos e movimentações de massas na história. Impérios que aumentaram sua população com escravização de outros povos, o esfacelamento de territórios e países através de invasões bárbaras, ou mesmo a natureza característica dos próprios povos, em se reproduzir mais do que outros. E mesmo constatações recentes não passam despercebidas, como o poderoso efeito da educação. Paul Morland é taxativo quando afirma que o acesso à educação é um importante freio no crescimento populacional, ao mesmo tempo que é um elemento fundamental no aumento da qualidade de vida individual. Um fenômeno tão recente quanto transformador.

O autor desliza bem nos assuntos, e nos premia com explicações razoáveis sobre situações históricas da aventura humana no mundo. Por exemplo, como a razão do sucesso das colonizações do Império Britânico tenha sido devido, entre outras coisas, ao seu envio continuado de cidadãos para as colônias recém conquistadas, substituindo em muito as populações nativas. Isso só foi possível porque a própria população britânica foi capaz de sustentar essas emigrações, devido à sua alta taxa de natalidade. E como esse efeito não funcionou com outros países procurando colonizar os territórios africanos. Como o poderio de um país, durante muito tempo, se deveu à capacidade reprodutiva da população, gerando massa de pessoas para sustentar um exército e combater nos fronts de batalha. Ou como líderes políticos abusaram de estratégias erradas para estabilizar uma nação, resultando na morte infundada de milhões de pessoas, como os exemplos grotescos da China sob o domínio de Mao e da União Soviética, sob a mão de ferro de um Stalin paranóico.

Enquanto que o primeiro terço da obra se concentra em aspectos gerais da população, o restante do livro é muito mais concentrado no mundo recente. Destaque é dado para as grandes navegações da Europa, que redesenhou o perfil das populações no planeta, bem como o tráfico de escravos que veio logo em seguida. Depois, o livro se divide de acordo com os continentes, aproveitando a existência de farta quantidade de dados disponíveis e compiladas, em grande parte, por órgãos internacionais, como a ONU e a UNESCO.  A sensação é estranha. Como se estivéssemos assistindo uma partida de futebol acompanhada por um narrador relapso e relaxado, que muda nos últimos quinze minutos da partida, por um narrador ágil e versátil. Não tenho como culpá-lo, uma vez que os dados recentes são fartos, em comparação com o que existe antes disso.

Apesar da narrativa fluir bem em boa parte do livro, o leitor desavisado pode se perder em algumas armadilhas. O autor, ao tratar de flutuações populacionais, migrações e outras movimentações parecidas, é obrigado a recorrer à expressões quantitativas. E isso não funciona bem quando formas diferentes de quantificar são colocadas juntas. Por exemplo, há muitas sentenças expressas da seguinte maneira: "1/3 da população de meio milhão de pessoas passou a ter 1,3 filhos por casal, por ano, no último quarto de século". Juntar frações, números inteiros e médias em uma mesma sentença geralmente torna o texto muito confuso para quem não é familiarizado em reconhecer quantidades. E posso garantir que a maioria das pessoas que vão se interessar por este livro não é assim. E infelizmente, essas expressões reinam em mais da metade do livro. Mais do que eu gostaria. Confesso que muitas vezes, perdia o estímulo em continuar lendo, de tanto que precisava enfrentar essas construções.

A obra de Morland foi publicada pela Zahar, e apresenta folhas foscas, amareladas e boas para ler. O volume é confortável para levar numa mochila ou numa bolsa, mas devido ao fato dele ter variações na fluidez do texto, é muito fácil se distrair da narrativa caso você decida fazer a leitura em um ambiente como um parque ou uma cafeteria. Não obstante, é suficientemente informativo e vai lhe ajudar a entender um pouco melhor sobre as subidas e descidas da maré humana. Mesmo que muita coisa não seja retida, a parte principal da história não vai ser esquecida.