sexta-feira, 27 de março de 2020

O Rio da Consciência


Não se assuste com a foto. Você vai entender no final do texto.

Quem escreve muito termina criando um estilo próprio, que por sua vez cativa uma boa quantidade de leitores para suas próximas produções. Então, mesmo que você não saiba qual será a próxima tacada do escritor, pode ter certeza que seu primeiro impulso é comprar o livro assim que ele for lançado. Se isso dá a fama e popularidade à autores de terror, romance, suspense e diversos gêneros literários, também se aplica aos escritores de divulgação científica. Suponho que este seja o caso do presente livro.

Oliver Sacks foi um médico que conquistou uma legião de fãs com seus livros de títulos inusitados que contam suas experiências com casos clínicos que variam do cômico ao irreal. Sua obra sobre alucinações é um deleite, e eu recomendo a leitura (resenhado aqui). Sua escrita é cativante e agitada, sem floreios e direta, dosando bem os momentos em que pretende explorar mais um assunto do que outro. Neste sentido, podemos dizer que Sacks tem um estilo muito agradável de se ler. Em sua vida agitada e repleta de episódios espetaculares, que terminou em 2015 por decorrência de um câncer, ele sempre fez questão de escrever. Na verdade, escreveu até morrer. E boa parte deste material provavelmente vai à público de forma póstuma.  É o caso de Rio da Consciência.

Publicado em 2017, o livro é um apanhado de diversos textos e opiniões de Sacks que não foram publicadas em nenhum outro momento. Por ser um homem com uma vasta experiência de vida e um profundo intelectual, é difícil imaginar que hajam muitos assunto dos quais ele não tenha uma mínima opinião formada. Inclusive é esta observação que prefacia a referida obra. E devemos reconhecer, ele seria hoje considerado um pensador polivalente. Pois bem, seu livro póstumo é um apanhado de suas opiniões e observações sobre assuntos diversos de seu domínio. Então o livro não é de um tema específico, mas sim uma coletânea para os admiradores de Sacks. Tanto é que o título do livro é o mesmo de um dos capítulos desta coletânea.

Com seu estilo humorado e informativo ao mesmo tempo, cada assunto é abordado com jovialidade e sem a carga de um peso informacional muito grande. E neste estilo preciso destacar dois capítulos particularmente interessantes, seja pelo seu ineditismo, seja pelo traço de objetividade e cientificismo que sempre caracterizou a personalidade de Sacks.

O primeiro é o capítulo "Darwin e o significado das flores". Por já ter lido uma extensa biografia de Charles Darwin, eu reconheço que ele foi um homem formidável, na sua imensa capacidade de explorar sistematicamente a natureza ao seu redor. E por possuir uma estufa de respeito em sua propriedade, também executou observações com plantas. Mas eu nunca tinha prestado atenção na profundidade de seus estudos botânicos. Este capítulo apresenta o que parece ser um princípio de enxergar as plantas através de uma perspectiva experimental, digna de um verdadeiro pioneiro em elaborar pequenos protocolos para responder perguntas simples. Suas observações sobre a polinização das plantas, seus procedimentos experimentais bem planejados e as respostas que conseguiu com eles me surpreenderam. O viés botânico de Darwin é realmente uma história que merecia ser contada por mãos competentes. E foi exatamente isso que aconteceu.

O outro capítulo chama-se "Uma sensação generalizada de Desordem". Pasmei quando percebi que tratava-se de sua própria história na detecção do câncer que o consumiu. Enquanto corria as páginas, ficava ora angustiado, ora curioso com o desenvolvimento do texto. Com uma objetividade incrível, e um sangue frio de fazer inveja, ele conta como foi a primeira descoberta dos indícios, o difícil período de tratamento, os efeitos colaterais e sua recuperação, com apontamentos bem ponderados, e uma visão muito direta e científica de sua própria experiência. E tudo isso ocorreu no ano de seu falecimento. Com uma visão bastante racional e ao mesmo tempo consciente de suas próprias emoções, ele não deixou de enxergar o problema com a maior objetividade possível. Aliás, o texto foi escrito nos meses que se seguiram quando ele retornou do hospital e depois faleceu, em agosto do mesmo ano.

Publicado pela Companhia das Letras, o livro é pequeno, com menos de 200 páginas, boa tipografia e folhas amareladas e foscas. Seu tamanho e peso são ideais para uma leitura casual e descontraída, ou mesmo para passar o tempo em um ônibus ou esperando algum serviço. A capa é curiosa: possui um desenho feito à tinta, sem nenhuma forma definida, e é encapado com um plástico transparente, onde se encontra o título. Apesar de original, a ideia atrapalha um pouco. Então eu decidi me livrar da capinha plástica que contém justamente o título. Só que eu me esqueci de tirar uma foto dele para o blog com essa capinha. Paciência. 

Recomendo a obra para os admiradores de Sacks e seu jeito simples de contar histórias.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Os Anjos Bons de Nossa Natureza - por que a violência diminuiu


Enfim, terminei!

Gosto de livros pesados, de livros com muito conteúdo. Mas este gosto tem um preço: demora muito, às vezes, para completar a leitura. Este gigante de celulose me consumiu mais de um ano para poder finalizar. É verdade que no meio do tempo, apareceram outras obras, e terminaram sendo finalizadas com rapidez. Mas aproveitar bem um calhamaço de 900 páginas repleto de dados e informações, é uma leitura que exige um tempo e uma concentração razoável, sem pressa e sem atropelos, não pode ser feita à toque de caixa. E isto eu com certeza posso falar da obra mais volumosa do psicólogo evolutivo, Steven Pinker.

Se você acompanha meu blog, já se deparou com outra resenha de uma obra dele (Como a Mente Funciona, bem aqui). Então vou reforçar o que havia dito antes sobre seu livro resenhado: ele é um escritor que não poupa palavras, e é viciado em dados. Boa parte de sua obra é preenchida de informações diversas, com os quais Pinker não se intimida em lidar, questionar, criticar ou refletir. E aqui ele mantém seu estilo, como também conseguiu criar uma coletânea impressionante de dados e mais dados, tudo para enfim oferecer bases sólidas de sua única afirmação: a violência do mundo diminuiu.

A história da violência é o que abre seu discurso. Não tem como negar que a humanidade é preenchida de episódios de crueldade, dor, assassinatos e toda sorte de crimes. E isso foi bastante útil e fundamental para que muitos grupos humanos pudessem sobreviver. Ele deixa claro quando faz um apanhado das mitologias e crenças humanas desde milênios, nas quais o uso consciente de violência em seus diferentes níveis foi um recurso político e impositivo de autoridade. O resgate histórico é bem recheado e diversificado. Ele enfim prova que nas raízes da humanidade agir com agressividade foi um ponto básico de nossa evolução, até muito recentemente.

Em seguida, com tudo isto claro, ele nos prepara para uma chuva de dados gráficos que são de fazer inveja a qualquer obra técnica. Ele cria uma conexão entre o que chama de Processo Civilizatório (uma transição do estilo de vida tribal para uma organização social gerida por um Estado) com a diminuição generalizada de diversos indicadores de violência. Aí temos quase uma centena de páginas recheadas de figuras que mostram um declínio evidente no índice de violência em diversos países, em diversas épocas. Quase todos os gráficos são iguais (e tinham de ser, pela natureza do livro) mostrando um declínio em todos eles, reforçando a ideia de que a violência realmente diminuiu. Mostra-se apenas com exceção o século XX, nas duas Grande Guerras. Pinker reconhece que ambas são gigantescas, e possuem índices inéditos em relação à mortalidade e eficiência na arte do genocídio e de massacres. E nas figura dá pra perceber estes números discrepantes, de seu discurso da redução da violência. Pinker nos convida a enxergar os dados de forma mais espaçada, e assim podemos notar que estes dois momentos trágicos se achatam razoavelmente se levarmos em conta outras proporções, como porcentagem de mortos por número de habitantes global, dentre outros fatores.

O autor enfatiza que há alguns processos chaves responsáveis pela redução da violência. O que ele chama do Processo Pacificador (quando, por questões lógicas, relacionamentos amigáveis e comerciais são menos custosos e mais benéficos para todos, do que o apelo constante à violência), o Processo Civilizatório, a Revolução Humanitária (a diminuição, mesmo que tardia, da percepção de que certas etnias ou grupos são menos importantes que outros) , a Longa Paz (um período da história humana no qual o número de batalhas e guerras oficiais entre nações surpreendentemente diminuiu) e a Nova Paz (os períodos recentes, pós Guerra Fria). Seu raciocínio, intercalado sempre com citações ora irreverentes, ora reflexivas, conduz bem para que achemos estes episódios razoáveis em explicar, no contexto geral, que a violência tem diminuído.

Como não podia ser diferente, Pinker mergulha na mente humana e nas razões biológicas que nos tornaram tão dependentes de atitudes violentas. Aqui eu não posso deixar de reconhecer que há muita coisa semelhante em alguns capítulos de seu livro sobre a mente, visto que ele, como psicólogo, não pode evitar de falar do assunto. Evidentemente ele se concentra nas raízes humanas e biológicas da agressividade, em um discurso que chega a ser bem mais esmiuçado que os anteriores. Depois de destrinchar nossas paixões mais animalizadas, ele então direciona o leitor para o discurso oposto: como nós mudamos ao longo do tempo, e passamos a tolerar menos episódios de banalidade do sofrimento. É clássico do estilo Pinker de escrever.

 A obra colossal finaliza com algumas reflexões sobre tudo o que foi escrito, e reforçando que estamos num período onde o apelo à violência apresenta uma tendência cada vez mais generalizada a desaparecer. Como relações amigáveis são sempre mais vantajosas, em diversos cenários, e que elementos chaves como alfabetização, educação, apelo à razão e desenvolvimento científico e tecnológico estão fundamentalmente atrelados com uma diminuição compulsória do recurso à força e violência. É um cenário realista, em função de seus dados, e otimista justamente pela mesma razão.

Publicado pela Companhia das Letras, o livro é bem pesado, mas a tipografia e as folhas fosca amenizam a leitura. Por ser muito volumoso, recomendo utilizar uma cadeira confortável. É quase um quilo de livro, que não tem com ser levado numa bolsa ou numa mochila para ser lido durante momentos de viagens ou na espera de alguma fila de serviços.