sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Breve história de quase tudo - do big-bang ao Homo sapiens



É muito pouco provável que uma obra de pouco mais de quinhentas páginas realmente consiga atingir o objetivo que seu título propõe. Bem, vejamos o que nosso caro Bill Bryson tem a nos contar.

Na verdade, seu livro trata do começo do mundo, de forma física, química e biológica, até chegar na espécie humana. Podemos enxergar que seu fascínio pelo tema de origens remonta a sua predileção por física, coisa que o autor não tenta disfarçar de jeito nenhum. Numa narrativa mista entre explicações de física e histórias de descobertas científicas relevantes para que pudéssemos começar a vislumbrar como tudo surgiu - desde as pesquisas das partículas subatômicas até os confins do cosmo através da astronomia - o autor se esforça para que entendamos as forças que agiram em todo o universo para que finalmente pudesse surgir um planeta como o nosso. Passeando pela física de partículas, matemática e relatividade, Bryson se sente muito confortável em criar uma narrativa que seja coerente e ao mesmo tempo ligue todas as pontas. Digamos que ele tem um razoável sucesso em atingir este objetivo.

Depois de sua retrospectiva sobre as propriedades da matéria e a dança cósmica vislumbrada pelos cálculos e observações astronômicas, chegamos então ao tempo do surgimento da Terra. Devo salientar que este livro é um dos poucos que dedicam boas páginas para um assunto que é literalmente profundo e enevoado em muitas incertezas. O autor apresenta diversas especulações - nenhuma fugindo das parcas evidências científicas disponíveis - sobre a formação da Terra e o que tem no seu centro, baseado em pesquisas geológicas e em uma boa dose de vulcanismo. Não é uma das leituras mais instigantes do mundo, mas tem lá seu valor.

Se estamos falando da Terra, é hora de abordar uma coisa que até o presente momento, só existe aqui. A vida. E para tratar deste assunto, Bryson recorre a um bocado de história e teorias. A origem da vida é um tema bastante rico, e o autor tem farto material sobre o qual pode discutir. Uma história aqui e ali para quebrar a tensão da narrativa explicativa, e temos um capítulo bem mais rentável. Não se surpreenda quando encontrar também uma boa dose de seleção natural e Charles Darwin. Tratar sobre a origem da vida sem recorrer a estes dois pode ser considerado até um sacrilégio para alguns leitores.

Agora então damos um novo salto, e chegamos ao fim do livro, sobre o surgimento da espécie humana. Aqui não foge muito à regra, quando o volume dedica páginas e páginas para nossos parentes e primos extintos, na sua incrível jornada por um mundo inóspito e perigoso, avançando estepe após estepe, enfrentando feras e novos humanos. No final, chegamos onde nos encontramos no momento que estamos lendo o livro.

Publicado pela Companhia das Letras, em um livro com uma curiosa capa preta, lilás, vermelha e azul (e páginas margeadas de azul também), a obra fez um considerável sucesso na época de seu lançamento, mas hoje parece ter caído em certo esquecimento. Bill Bryson é um autor experiente, e sua narrativa não é ruim. Bem recheada de referências científicas, sua obra conta uma narrativa mais comum sobre a origem do universo, da terra e da vida. Uma leitura que não é espetacular, mas não deixa de ser boa.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

A Mente Assombrada


Qual a primeira coisa que viria à sua mente se lesse este título em um livro? Confesso que logo de cara, eu pensaria num livro de ficção ou de terror. Aí seus olhos caem no autor da obra, e sua visão muda completamente de direção. Aliás, títulos inusitados e bem diferentes para livros que abordam condições incomuns parecem ser uma especialidade do renomado médico inglês Oliver Sacks.

Se você não conhece este nome, pare agora mesmo a leitura deste texto, abra uma nova aba no seu navegador e acesse a Wikipédia. O autor do livro O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu e outra obra que inspirou o filme Tempo de Despertar, protagonizado pelos gigantes do cinema, Robin Williams e Robert de Niro (que ganhou um bem merecido oscar por sua atuação) não merece menos do que isto. Pronto. Agora que você já sabe quem é Oliver Sacks, vamos retornar para seu curioso volume.

Oliver Sacks se notabilizou por chamar a atenção pública em suas obras para condições médicas pouco comuns, numa narrativa que quase beira à romantização. Com uma caneta leve e flexível, ele envolve o leitor nas suas palavras bem escolhidas, e passeia com suavidade diante de situações que poderiam ser consideradas bem desconfortáveis. E aqui ele vai nos oferecer uma boa dose de suas próprias experiências no pouco explorado terreno das alucinações.

Eu confesso que sempre tive uma parcela de curiosidade sobre o tema. Eu já tive alucinações quando estava doente e febril, mas nenhuma delas se fixou muito ou de forma tão detalhada em minha mente. Na leitura de Sacks, comecei a entender que o processo alucinatório não é um evento típico de estados alterados de consciência, ou impulsionados por doenças ou condições fisiologicamente estressantes. E sua narrativa é rica em explorar este vasto mundo do "enxergar o que não existe".

Desde alucinações por psicotrópicos até danos cerebrais que afetam nossa percepção visual do mundo, o autor nos presenteia com um verdadeiro caleidoscópio de experiências diferentes. Pessoas completamente normais, alucinando formas indistinguíveis da realidade, ou enxergando miniaturas detalhadíssimas de prédios e obras de arte, em locais completamente absurdos. O mundo das alucinações é apresentado com uma riqueza de detalhes e de certa beleza, se podemos chamar assim. É de impressionar que muitas alucinações podem ser comportar como verdadeiros fantasmas independentes, demonstrando inteligência e chegando a travar diálogos com seus alucinados. Objetos, fenômenos atmosféricos, criações disformes e monstruosas fazem parte de um leque incrivelmente amplo de imagens que podem ser geradas pela nossa mente. E o autor procura nos apresentar suas causas e possíveis tratamentos. E na escrita fácil de Sacks, a história se desenrola com bastante conforto.

Publicado pela Companhia das Letras, o livro fino não denuncia suas quase trezentas páginas, em tipografia elegante para folhas amareladas e foscas. Uma excelente companhia para bancos de praça, filas de espera ou mesmo uma calma tarde no final de semana. Poucas vezes relaxar com uma leitura pode ser uma coisa tão esclarecedora a respeito das sutilezas de nossa mente. 

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Supersentido - por que acreditamos no inacreditável



Este modesto volume chegou nas minhas mãos de uma forma bem inusitada. Estava eu esperando num terminal rodoviário um amigo chegar, quando uma espécies de feirinha me chamou a atenção. Me aproximei modestamente, e vi que era uma feira de livros. Muitos surrados, outros com títulos bem pouco comuns. Era uma miscelânea digna de uma sebo variada. Pensei na hora que, se eu estava esperando mesmo, porque não dar um tempo no celular e ficar vistoriando aquela pilha mal arrumada de livros? E foi o que eu fiz. Mexendo aqui e ali, revirando um e outro volume, encontro uma pequena coluna de livros de bolso, de cor amarelado queimado. Apanhei o mais visível e comecei a folhear. Não demorou muito para as poucas linhas me chamarem a atenção. Incrivelmente barato, pus o dinheiro na mão do vendedor e logo em seguida eu estava sentado em um banco, folheando o charmoso livrinho.

A pequena obra realmente merecia um destaque maior. Sua proposta pode parecer até meio banal, para quem está acostumado com livros que se propõem a nos explicar como nossa mente funciona, e com enxergamos o mundo. Mas Bruce M. Hood tem uma expertise um pouco diferente, que oferece uma abordagem bem inusitada aos interessados pelo tema. Primeiro ele é um psicólogo com duas destacadas linhas de pesquisa que vem muito à calhar quando se trata de uma obra destas: a primeira é que ele estuda justamente o pensamento mágico, ou pelo menos nosso vislumbre, como adultos, diante de truques de mágica. A segunda é tão interessante quanto a primeira: o desenvolvimento cognitivo em crianças. E ele aborda os dois com uma boa dose de equilíbrio.

O supersentido que dá o título à obra é baseado na nossa instintiva tendência a acreditar no sobrenatural, e como tememos que estas forças tenham certa influência ou poder sobre nosso comportamento. Por que somos assim? Será que faz diferença se você receber um órgão doado por um voluntário que morreu em um acidente, ou que foi um assassino em série? Você compraria uma casa onde houve um assassinato horrendo e chocante? O autor nos leva para passear nesses assuntos inicialmente desconfortáveis, mas nos acalenta com uma boa escrita recheada de informações científicas, sobre pesquisas realizadas a respeito de como nos deixamos levar por tais pensamentos. Citando uma respeitável literatura com pesquisa sobre aprendizado de bebês - e faço uma ressalva que mal me recordo de outros escritores que tenham utilizado estes dados preciosos para tratar de como nosso processo cognitivo se desenvolve - Bruce Hood nos brinda com casos escolhidos que são um deleite experimental no tocante à como crianças começam a mudar suas formas de enxergar o mundo. E de que maneira elas já começam a perceber certas características ao nosso redor, e construir sua própria noção de realidade. É um texto formidável.

Passeando nos nossos "poderes sobrenaturais" de percepção, e fazendo uma reinterpretação bem mais pé no chão, baseada em experimentos científicos, chegamos em um ponto onde mais se aproxima do centro da obra. Neste momento enxergamos o ativista cético no autor, que nos presenteia com um texto lúcido e direto sobre o assunto. Ao final da obra, encaro o melhor capítulo deste livro, quando o autor se propõe a nos apresentar uma sensata teoria sobre a Biologia da Crença. Fabuloso e conciso, não me lembro de ter visto em outros textos uma proposta tão coerente de um assunto que mereceria ser bem melhor tratado por outros autores.

Publicado pela editora Novo Conceito, você não consegue adivinhar de jeito nenhum que este livreto minúsculo possui quase quinhentas páginas! Para se tornar de bolso, o livro teve de consumir toda a margem das páginas e investir em letras maiores. As folhas amareladas e muito finas também contribuem para que você não sinta o tempo passar quando passa os olhos nas curiosas histórias de superstição, mágica e aprendizado de bebês.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Uma Senhora Toma Chá... - como a estatística revolucionou a ciência no Século XX



Confesso que eu nunca, nunca na vida iria imaginar que este seria um título de um livro sobre estatística. Agora leia direito: eu falei sobre estatística, e não de estatística. Se você tem alguma fobia com números, ou levou pau em matemática na escola e ficou traumatizado, deixe-me lhe dizer uma coisa: este é o seu livro!

Este é um livro de história. Isso mesmo, história da estatística. Você não vai encontrar nenhuma (e eu repito, NENHUMA) equação ou coisa parecida nas quase trezentas páginas desta obra tão original como cativante e maravilhosa. O estatístico que a escreveu, David Salsburg, fez realmente um volume para se tirar o chapéu.

Dono de uma narrativa simples e um extraordinário dom de contar histórias, o autor nos convida a visitar o inusitado mundo dos estatísticos. Seus profundos conhecimentos do assunto e sua escrita fácil em tornar palpável um tema tão árido e assustador como este são simplesmente um deleite para o leitor. Ele praticamente se detém em contar como nossa visão de mundo saiu de um universo e uma visão escrava de medidas absolutas e perfeitas para encarar a verdadeira natureza das variabilidades. Está certo que pregos e parafusos precisam ter tamanhos e proporções exatas para funcionarem, e os fabricantes tem de garantir isso. Mas o tamanho das plantas e o peso das ovelhas não seguem essa ordem de jeito nenhum. Como viver em um mundo com tantas variáveis? Como tratar com tantas diferenças? É possível enxergar padrões no meio de tantas variações? A estatística chegou para mostrar que sim. E autor faz isso de forma muito divertida.

Logo no começo, a história da senhora tomando chá já desarma o leitor mais receoso com uma obra falando sobre números. Depois ele se aprofunda nas enormes mudanças que ocorreram na própria estatística, ao longo de décadas, nas mãos de personagens que você no máximo só deve ter ouvido falar, quando usou programas de computador para analisar dados. Se você tem alguma experiência com isso, e já precisou utilizar de métodos e teste estatísticos em sua vida, a leitura vai ser bem mais agradável. E por um simples motivo: os testes estatísticos recebem o nome de seus criadores. São estas pessoas que aparecem nas páginas da obra. Ele simplesmente nos conta a vida de cada um deles, como influenciaram a estatística, e suas peculiaridades. Desde gênios e verdadeiros jovens com enorme talento numérico, como Ronald Fischer, até personalidades produtivas e práticas como John Tukey. Sem falar de uma profunda rede de intrigas entre muitos deles. Rancor, vingança e desaforos não faltaram neste seleto mundo dos que trabalham com números. Uma verdadeira novela.

O melhor da história toda é justamente que o autor sabe trabalhar sua narrativa mesclando o raciocínio dos estatísticos com os problemas próprios da estatística, suas vantagens e desvantagens na interpretação dos dados por números e testes. Então você entende com mais clareza o que motivou cada um deles em pensar em soluções que pudessem resolver problemas tanto matemáticos como práticos. É gostoso começar a acompanhar (e entender) o raciocínio envolto nas razões que os levaram a desenvolver novos métodos para compreender o mundo. E isso é explicado com muitos detalhes, de forma branda e bem satisfatória. Um verdadeiro manjar.

Publicado pela Zahar, o livro tem menos de trezentas páginas, e flui que é uma beleza pelo leitor. O estilo é instigante e prende a atenção para o próximo passo da história. Folhas brancas com tipografia e espaçamentos perfeitos, dá pra você levar para qualquer lugar e fazer sua leitura tranquila. Esta sim é uma obra como poucas, que você não esquece com facilidade, lhe dá bons momentos agradáveis e ainda por cima retira um pouco de seu receio por números. Este com certeza eu recomendo.

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Ciência Picareta



Este é um daqueles casos que o título não faz jus à obra.

Mesmo assim, o livro do médico Ben Goldacre não é menos interessante por causa disso. Ao invés de ciência picareta, eu pensaria em algo que desse uma ideia mais precisa por onde o livro vai se nortear. Mas enfatizo aqui que este detalhe não desmerece a obra, sequer a torna menos interessante. Pelo contrário. Vemos um texto lúcido, que avança em um assunto tão sério como atual nos dias de hoje.

O autor nos apresenta como a medicina pode ser tão erradamente manipulada de diferentes formas possíveis, e como continuamos a cair nas armadilhas da má propaganda, má interpretação e má fé. Ele vai concentrar dos os seus esforços em falar como uma visão errada ou pouco clara sobre como a ciência funciona afeta de forma direta tratamentos, remédios e porque não dizer, a opinião pública sobre a sutil e mal compreendida ciência médica.

A obra tem um arsenal completo contra propostas de tratamentos que são utilizadas e carecem de alguma evidência científica. Você já sabe do que eu estou falando, se imagina que ele vai metralhar com chumbo grosso a homeopatia. Uma bela história sobre estudos controversos, metodologias falsas, brigas e debates entre profissionais e uma verdadeira surra sobre os remédios homeopáticos, que ainda insistem em preencher prateleiras e alimentar sua própria indústria farmacêutica, digamos assim. Nisto, ele nos oferta um excelente capítulo sobre efeito placebo. É tranquilizador entender um pouco melhor sobre este complexo efeito, que ainda é encoberto por uma incômoda névoa de confusão.

Narrativas sobre médicos controversos, casos absurdos de negligência, manipulação simples e confusão de dados recheiam o conteúdo do livros. Se você quer exemplos, estão aí de sobra. Ele perambula ora sobre a metodologia científica na medicina, ora sobre o impacto e influência das grandes empresas no processo de descoberta e comercialização de fármacos. Aqui e ali, Goldacre não poupa ninguém. Ciente do quão implacável é o mercado farmacêutico, ele sabe e reconhece que ela tem um peso em muitas decisões importantes, mas não descamba para as teorias da conspiração. Vemos um texto bem lúcido neste sentido.

O livro de pouco mais de trezentas páginas dedica sua parte final para nossa incrível capacidade de não enxergar dados objetivos e a prevalência de nossos vieses cognitivos, que nos mantém ainda escravos das narrativas mirabolantes em detrimento da objetividade científica. Uma pequena aula sobre estatísticas de dados médicos e dos impactos da paranóia anti-vacina fecham o volume.

Publicado pela Editora Civilização Brasileira, o livro parece ser mais grosso do que realmente é, com folhas amareladas num sentido que em pouco tempo parecem ser velhas, mas com uma tipografia adequada e confortável. Ele é ilustrado, especialmente com gráficos para ajudar em algumas partes mais técnicas.

domingo, 27 de outubro de 2019

A Grande História da Evolução - na trilha de nossos ancestrais



Existem motivos que me levam a olhar de soslaio um livro cuja capa estampa de forma tão destacada a palavra quase mítica Evolução. Hoje, acumulo uma desconfiança adicional com qualquer coisa que procure evidenciar o termo quântico em se tratando de livros ou artigos de forma geral. Um receio natural, que chega a ser quase instintivo, já que vivemos em um mar de informação não filtrada, onde simples opiniões praticamente se forçam a conviver com evidências científicas como se estivessem em pé de igualdade. Mas voltando ao livro, a palavra Evolução se sobressai justamente em uma capa de coloração vermelha viva, quase penetrante. Mas vamos com calma. Dê mais alguns instantes ao seu cérebro, ele precisa processar aquele detalhe amarelado abaixo do título, que faz questão de se mostrar contrastando com a capa "sopa de tomate". Quando você lê o nome, leva segundos para você relaxar, se tranquilizar e pegar o livro em mãos.

Este é com certeza o livro mais volumoso publicado por Richard Dawkins. E desafiador, diga-se de passagem. Um convite de mais de setecentas páginas para seguir nos textos bem elaborados e elegantes de um dos maiores evolucionistas de nossa época. Depois de dezenas de obras dedicadas ao tão incompreendido e fascinante processo evolutivo, o autor provavelmente se viu impulsionado a propor com suas próprias palavras uma obra que pudesse fazer jus à beleza e profundidade que é a história e evolução das espécies. Penso algumas vezes que ele deve ter parado em um determinado momento e refletido sobre o extenso conteúdo de dezenas de livros-texto de ciências biológicas, e como seria interessante que aquelas informações organizadas de forma sistemática e tediosa, usadas para guiar os estudos de alunos de graduação, pudessem ser transformadas em um texto suave e corrido, com um alcance maior do que a restrita comunidade discente acadêmica. Será que esta história tão fascinante poderia ser contada de forma melhor?

Pois bem, ela pode. E foi o que Dawkins conseguiu fazer. Claro que seu extenso livro não é um curso de zoologia ou coisa parecida. Mas sim um passeio conduzido por um cicerone que conhece os melhores pontos para contar a história. Preciso aqui destacar duas características que tornam a obra única. A primeira é que ele convida o leitor a se aproximar das histórias através do que ele chama de "contos", que são as separações dentro da narrativa do texto, onde ele mantém o leitor atento à uma mistura de explicações, experiências pessoais, descrição de experimentos, todas circulando no entorno dos protagonistas dos contos. Essencialmente, não faz muita diferença, mas não deixa de ser uma forma original de trabalhar o texto.

O segundo é uma proposta ousada e realmente diferente. Dawkins decide contar sua história de trás pra frente. Isso mesmo. Ele começa falando das espécies mais derivadas (neste caso, os hominídeos) e vai caminhando, descendo degrau após degrau, visitando os outros organismos partindo do mais complexo para o mais simples. Nossa história da evolução começa, se podemos dizer assim, de forma invertida. A princípio você não sabe muito bem se vai dar certo, e decide confiar no autor nesta jornada inusitada. É no mínimo divertido ler sobre a evolução dos organismos partindo dos homens, passeando pela diversidade até culminar nos organismos unicelulares. E no lápis de Dawkins, vale muito a pena.

Com uma narrativa divertida, recheada de histórias (algumas engraçadas), rica em fatos e informações que vasculham pela genética, diversidade e química, seu livro com certeza mantém o padrão do que se espera de sua autoria. Publicada pela Companhia das Letras, com folhas amareladas e foscas e tipografia elegante, ainda contém no seu interior alguns encartes coloridos. E não esqueça das referências. Você vai gostar bastante deste volume.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A Pré-História da Mente - uma busca das origens da arte, da religião e da ciência



Quando peguei esse livro em mãos eu me perguntei no primeiro momento: "como um arqueólogo pode saber alguma coisa sobre mente?". Dei uma risadinha no meu íntimo e comecei a folhear a obra, procurando informações complementares e um pouco do conteúdo. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que o título do primeiro capítulo era justamente a minha irônica pergunta. Não precisou de mais nada. Fui até o caixa e comprei o livro de Steven Mithen. Vamos ver o que ele tem para nos contar.

O primeiro aviso é que este livro é basicamente arqueológico. Fósseis, pedaços de lanças, pinturas rupestres, ferramentas neolíticas e ossos aos montes recheiam as páginas. Até aqui tudo bem e dentro do esperado. A primeira parte da obra se propõe a ser mais didática, e detalha certos aspectos históricos e uma arqueologia mais básica, para situar o leitor no universo que está sendo apresentado. Uma cortesia do autor, que tem a boa vontade de oferecer um pouco de preparo para introduzir o grosso da obra. Mas é no correr do texto que vamos encarar uma guinada de arrepiar e que dá um gosto especial para as páginas seguintes. Tateando nas pistas e lascas de pedra como um Sherlock Holmes, ele tenta destrinchar a forma que os primeiros hominídeos pensavam sobre o mundo que os envolvia, e instiga algumas perguntas bem interessantes. Por exemplo, ele nos sugere que o método para se construir uma lâmina útil, cortante, com pedras quebradas de forma a criar uma superfície afiada, provavelmente não veio do que instintivamente imaginamos que deve ter acontecido - quebrar um monte de pedras até chegar num pedaço afiado - o clássico "acerto-e-erro". O autor propõe que o cérebro dos hominídeos seja dotado de uma percepção quase que instintiva sobre física básica, de forma que ele tenha procurado quebrar rochas no sentido de fazer elas quebrarem justamente da maneira que gerasse uma superfície laminar. Achei uma ideia ousada, e por que não dizer original. E ele não para por aí.

Se sustentando em pesquisas com primatas e um bom conhecimento de psicologia geral, o autor nos oferece uma nova forma de pensar sobre a mente, e conduz o leitor de forma suave e raciocinada para chegar em sua própria teoria da evolução da mente. Acho que sua jogada mais inovadora é propor que o cérebro do homem primitivo já veio com uma espécie de caixa de ferramentas para compreensão do mundo, que veio junto com seus instintos naturais de sobrevivência, ambos tendo se desenvolvido em seus ancestrais. O homem teria uma espécie de inteligência social, para interagir com outros humanos e outras espécie. Uma inteligência técnica, que lhe facultou criar ferramentas, e por fim uma inteligência naturalista, que o auxilia a ter uma imagem mental do que está ao seu entorno. E o mais intrigante é que da forma como a narrativa é conduzida, sua teoria não deixa de fazer sentido.

Depois de passear confortavelmente na sua proposta, o autor dedica o final da obra para como essas inteligências podem ter refinado nosso pensar até chegarmos a ideias mais abstratas, a religião e a origem da agricultura, como sendo um resultado lógico da evolução de nossa mente. A escrita não se destaca pela sua fluidez, mas é muito rica e informativa. Publicado pela UNESP Editora, o livro tem uma capa anormalmente dura, com uma tipografia que passeia mais pelo estilo de obra didática, apesar do texto correr uniforme. Ao final de cada capítulo diversas notas e uma boa referência bibliográfica. A obra é interessante, mas não espetacular. Você vai ler, gostar e talvez lembrar-se dela em um momento ou outro.

domingo, 20 de outubro de 2019

7 dicas de como escolher livros de divulgação científica




Decidi escrever este texto depois de dar uma boa olhada no meu blog e na minha prateleira de livros. Passeando as vistas sobre os meus títulos, me deparei com algumas obras que me foram presenteadas como sendo científicas, e que na verdade não eram. Por um conselho de amigo, me abstenho de resenhar volumes que decididamente não gostei, ou são claramente enganadores. Felizmente esta literatura é mais escassa, e logo nas primeiras paginadas você já reconhece o estilo maroto do autor que quer vender gato por lebre.

Me recordando disto, pensei em sugerir algumas dicas que possam nortear o leitor de ciência para escolher um bom volume. Baseado em minha experiência, talvez estes pequenos conselhos possam ser úteis na hora de investir um bom dinheiro em uma obra que realmente valha a pena ser lida. Vamos lá.

1) Títulos e subtítulos. Estes são o principais chamativos de uma obra. É aqui que o pessoal do marketing cai em cima, para elaborar a melhor forma de motivar você a começar a folhear uma obra. Se for uma tradução, não esqueça de olhar o nome do título original. Veja se houve alguma deturpação, ou se pegaram realmente a ideia original e a transcreveram da forma mais fiel possível. Isso não é um indicador de que o livro presta ou não, mas uma forma de você ver se eles foram bons o suficiente para adaptar o que o autor quis dizer. Mesmo que o título seja gigante e feito para chamar sua atenção, fique atento nos subtítulos. Às vezes, eles são mais reveladores e servem como um excelente resumo da obra. Já li muitas textos com títulos horríveis, que foram “salvas” pelos subtítulos.

2) Temas. Seja prudente com a obra que você vai escolher. É certo que os leitores de divulgação científica têm suas preferências por áreas. Se você sabe que o assunto a ser abordado é mais frequentemente usado de forma equivocada, e pouca gente tem realmente um bom domínio no assunto, é hora de você folhear o texto e se certificar de que o autor tem compromisso com o embasamento científico. Temas polêmicos são usados tanto por autores de má fé como autores de ciência. Ambos para diferentes fins, obviamente. Se certifique de que o escritor é realmente um conhecedor da área para não confundir alhos com bugalhos.

3) Autores. Aqui não tem muito mistério. À medida que você vai lendo obras de ciência, você vai se acostumando com determinados estilos dos autores. Neste caso, você começa a se interessar pelo que ele tem a dizer, ou reconhece que seu jeito de abordar os assuntos lhe é agradável. Quanto mais famoso, geralmente menos dúvida você tem em estar comprando uma obra que vai lhe satisfazer. Por outro lado, se o autor não é conhecido, recomendo que você busque na própria obra um pouco sobre ele. Veja sua formação. Se ele for um cientista, que esteja lecionando em uma universidade ou trabalhe em um instituto de pesquisa, é mais confiável que ele traga informações cientificamente embasadas. Por outro lado, ele pode ser um jornalista da ciência, ou um divulgador científico popular. Nestas duas ocasiões, se dá um voto de confiança para ver se ele se mantém a mesma desenvoltura no terreno da escrita. Aqui é um passo de risco mesmo. Você está apostando que ele é bom, e vai pagar pra ver.

4) Bibliografia. Aqui eu recomendo fortemente que você vá para o final da obra e folheie quais as referências que ele utilizou para construir seu texto. Meu nível de confiabilidade na obra é proporcional ao número de artigos científicos e livros consultados. É comum que você seja apresentado a novos e talentosos autores desta forma, e isto é uma grande vantagem. Fiquei sabendo de livros de divulgação científica muito interessantes justamente porque eles haviam sido citados por outros autores que eu estava lendo. E não tinha encontrado eles na internet ou prateleiras de livrarias. E quando a obra é boa, o autor do livro que você está lendo faz questão de mencionar isso. Quando olhar a bibliografia, tome cuidado para ver se as referências usadas fazem sentido. Por exemplo, se é um livro sobre física, há periódicos de física que tendem a publicar artigos de maior qualidade. Se o autor bebeu desta fonte, as chances de ser uma obra mais esclarecedora são altas. Agora tome cuidado: certos livros recorrem a artigos científicos que foram publicados há muito tempo atrás. E nesta época, era mais fácil publicar sobre pseudociência. Se não for uma obra de cunho histórico, preste atenção no que ele cita e como ele cita suas referências.

5) Ilustrações. Uma obra de divulgação científica pode ou não conter imagens. Ao folhear, passe as vistas e se detenha um pouco nelas. Livros científicos costumam recorrer a imagens, esquemas e gráficos. Se você reconhecer certas ilustrações com temas corriqueiros de natureza científica com os quais você já está familiarizado, é uma boa indicação de que o texto está indo no caminho certo. Caso ainda tenha dúvidas, pegue a legenda da figura e procure no livro em que contexto ela está sendo abordada. Muito dificilmente uma obra cita uma ilustração de forma solta. Ela deve estar sendo discutida no corpo do texto. 

6) Editoras. Até algum tempo atrás, eu nunca tinha prestado atenção se a editora influenciava uma obra. Minha opinião mudou radicalmente depois de uma dezena de títulos lidos. Existem certas editoras que gostam de investir em obras de ciência, e decidem traduzir e comercializar um volume quando ele tem um bom respaldo científico. Por outro lado, outras buscam títulos polêmicos ou chamativos, simplesmente para fazer dinheiro ou apenas achando que ela é científica por usar alguma palavra “da ciência”. Notei que boa parte de meu acervo pertence a um grupo muito reduzido de editoras. Já vi livros com temas científicos atraentes, produzidos por editoras que são conhecidas por publicar obras de cunho esotérico. Uma folheada rápida é suficiente para que você evite uma cilada. Editoras grandes e conhecidas tem certa confiabilidade nas obras que decidem comercializar, porque precisam ser mais prudentes ao que vão oferecer ao seu público. Editoras universitárias também são boas fontes de obras confiáveis.

7) Leia um ou dois parágrafos da obra. Com o tempo e experiência, você vai começar a notar que é possível se identificar com algum autor apenas vendo como ele costuma escrever as coisas. Nem todo cientista ou escritor de divulgação científica em começo de carreira acerta de primeira. E talento para escrever não é uma coisa muito comum. Então eu recomendo que você pegue o volume, encontre uma cadeira mais confortável se tiver, e encare parte do texto. Digo um ou dois parágrafos porque geralmente isto basta para você sabe se o texto é interessante, está ao seu gosto e agrado. Se o autor for bom, não importa o que ele esteja falando, vai lhe chamar a atenção. Isso pode ser bom ou ruim. Use seu raciocínio para identificar nas entrelinhas a mensagem que ele quer passar. 

Estas sugestões servem para ser observadas simultaneamente, quando você estiver em dúvidas se vai ou não adquirir uma obra. Na maioria das vezes (não todas, certamente) eu me senti satisfeito com a obra que adquiri, seguindo este raciocínio. E então sinto que tenho errado menos ao longo do tempo, e investido mais em obras que vão realmente acrescentar ao meu acervo. Espero que vocês achem estas sugestões úteis e possam aproveitar bastante nas suas próximas aquisições.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Por que as Pessoas Acreditam em Coisas Estranhas - pseudociência, superstição e outras confusões dos nossos tempos



Uma obra prefaciada pelo consagrado Stephen Jay Gould não é de se deixar de lado. E se você não conhece Jay Gould, abra uma segunda aba no seu navegador, vá para o site de uma sebo de sua preferência e encomende alguma obra dele. Infelizmente não há perspectivas para que seus livros sejam reeditados, e praticamente todos estão esgotados nas editoras.

E o que torna um livro tão especial para ser prefaciado por este paleontólogo que já apareceu em Os Simpsons, conversando com Lisa Simpson sobre o suposto aparecimento de um fóssil de um anjo nas escavações de uma obra (lembro do episódio como se estivesse assistindo agora)? Digamos que neste caso, o título simplesmente diz tudo. Boa jogada de marketing que deu muito certo, para um público formado por leitores ávidos por literatura cética escrita por um homem que foi fundador e redator do famigerado magazine The Skeptical Inquirer. Jay Gould era um defensor do pensamento cético, e deve ter sentido prazer em prefaciar o volume de um cético tão ativo quanto ele. Então,  mãos à obra.... quero dizer, vamos à obra.

Nota-se que seu autor, o americano Michael Shermer, fez o dever de casa para poder escrever o livro. Posso dizer que ele apresenta uma obra bem recheada de argumentos e de histórias. Seu estilo flui de forma quase jornalística, provavelmente em decorrência de sua experiência como redator, o que torna a leitura bem mais agradável. Dá pra notar que ele está ávido para fazer narrativas, mas claramente sua intenção de deixar o livro mais condensado é um freio no seu lápis, e ele procura se moderar. Sua escrita tenta criar um balanço entre a tendência de contar histórias com a necessidade de passar a compreensão que temos de como entendemos o mundo. Ele navega justamente nas falhas e tendências que nosso cérebro tem em relação à interpretação do mundo ao redor, e como isso afeta nosso poder de percepção e compreensão da realidade. O texto é bem recheado de fatos e personalidades, ora conhecidas, ora desconhecidas, o que torna a leitura bem mais agradável. Como é de praxe, ele procura diferenciar ciência de pseudociência, e é bom ao abordar sobre falácias. Recomendo que leia com mais atenção nesta parte. Dedica um tempo relativamente curto para fazer isso, e então entrega boa parte da obra para uma visão cética e acirrada de casos envolvendo crenças equivocadas e superstições. Encontramos então um Shermer ativista do ceticismo.

Talvez ele tenha se alongado demais nestes casos muito específicos. Shermer parte para uma análise crítica de experiências de quase-morte, abduções, criacionistas e negadores do holocausto. Sua veia jornalística neste ponto parece saltar e ele se deixa levar pelo instinto investigativo. Mas seu estilo torna a viagem agradável, e você se depara com histórias interessantes. Algumas destas protagonizadas por ele mesmo. Vale a pena seguir o texto. Além de tudo, esta obra é um alerta constante para a incrível e infindável criatividade daqueles que buscam a cada momento se aproveitar das falhas de nosso maquinário cerebral tem de pensar criticamente. Se você já navegou nas obras pseudocientíficas de auto-ajuda, vai encontrar alguns nomes famosos nestas páginas. Ao final, ele parte para um curioso tópico, no qual procura explicar por que pessoas inteligentes acreditam em coisas estranhas. Uma verdadeira cereja do bolo.

Publicado pela JSN, o livro tem páginas brancas e foscas, de capa mole. O espaçamento entrelinhas é pequeno e as fontes se adaptam para facilitar uma leitura continuada, onde variam conforme se destacam as citações. O livro é ilustrado e conta com um índice remissivo e boas referências bibliográficas. É uma obra que vale a pena ter em casa.

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Em busca da divulgação científica perdida: A XII Bienal Internacional do Livro de Pernambuco



Pois é. Munido de minhas alpercatas de passeio (como se eu tivesse outras), fui encarar o templo literário da perdição (é fácil você ficar perdido naquele labirinto de stands) com uma missão a cumprir. Mais uma bienal e mais um desafio: promoções de livros de divulgação científica, sejam de novos autores estreando no terreno ou dos clássicos que já conhecemos.

Primeiramente, não tenho críticas à bienal. Pelo menos críticas muito sérias. O espaço é amplo e a proposta é louvável. Você vai encontrar muitas promoções e livros verdadeiramente baratos. Como é de se esperar, as editoras vão jogar todas as suas cartas na divulgação da literatura mais comum e mais atraente para o maior público possível. Inclua aí livros autores consagrados, os grandes clássicos, obras que deram origem a blockbusters nos cinemas e seriados famosos. Por exemplo, nunca tinha visto uma oferta tão escancarada das obras de Stephen King, justamente depois do lançamento de uma das melhores adaptações de seu conto para a telona. Passei a considerar o filme It 2 uma obra quase messiânica, pois fez um verdadeiro milagre (re)colocando o consagrado autor da literatura de terror de volta nas mesas destacadas de muitas editoras. E tinha gente na fila do caixa comprando o tijolo de King por até setenta reais.

Por outro lado, o leitor mais específico sai perdendo. Centenas e centenas de títulos espalhados sem muita ordem sobre mesas e prateleiras apinhadas de pessoas. Dá uma sensação de claustrofobia agoniante pela qual nem todo mundo está bem preparado para passar. Talvez seja um efeito do começo da Bienal, quando os primeiros visitantes querem aproveitar o que tem disponível. De verdade, não sei. Mas nas minhas buscas, senti uma profunda falta de ordem que pudesse me orientar para um porto seguro feito de livros de divulgação científica, em praticamente todos os stands.

Em uma curta jornada de quase três horas (a oferta é realmente muito grande, e não dá pra passar as vista de forma mais meticulosa em cada uma das editoras neste espaço de tempo), senti profundamente a falta de autores de popularização científica. Para não dizer que não encontrei nada, consegui enxergar na editora Imperatriz livros de Sagan, Dawkins, Hawkins, DeGrasse Tyson, Pirula e alguns menos conhecidos. Mesmo assim, as promoções não estavam tão atraentes (variavam entre 10% a 20% de um preço já razoavelmente alto), e não me senti inclinado a investir. De resto, minha busca foi frustrante.

Sabe, não vou culpar ninguém por causa disso. Eu entendo a necessidade das editoras de promover o máximo possível os livros com maior saída. E também entendo a falta generalizada de interesse que o público tem por livros sobre ciência. Sequer os preços ajudam. Livros bons de ciência não são baratos, e é preciso uma boa dose de incentivo pessoal e vontade para investir nesta literatura. Além disso, a grande maioria não tem o hábito de ler, e desta forma a literatura científica não goza do prestígio de ser colocada no panteão dos "mais vendidos". Apesar disto, a Bienal é um evento gigantesco, que dura uma semana inteira repleta de pessoas. E isso com certeza é positivo.

Resumindo, a bienal é um bom pontapé inicial para instigar o interesse por livros e pela leitura. É igualmente boa para um leitor voraz que tem um apetite respeitável para uma variedade grande de literatura, e quer garimpar promoções. Para leitores mais específicos, recomendo pedir as obras pela internet aproveitando algum cupom de frete grátis.

domingo, 6 de outubro de 2019

A Paisagem Moral - como a ciência pode determinar os valores humanos


Não sei se eu estaria certo em dizer que essa obra se apresenta tanto como um texto de divulgação científica quanto filosófico. Ele tem uma pegada bem mais reflexiva, apesar de apresentar uma respeitável quantidade de referências, notadamente em artigos científicos publicados em periódicos indexados, a moeda forte da comunicação no ambiente científico acadêmico. Mesmo com esse recheio de respeito, o livro é surpreendentemente curto, com pouco mais de duzentas páginas, excluindo aí as notas e a própria bibliografia. Enfim, o que você vai encontrar neste texto?

Sam Harris é um filósofo, que se tornou conhecido pela seu apoio veemente da ciência nos tempos atuais, um defensor de carteirinha do ceticismo e um crítico ácido da religião. Então não é surpresa que seu texto reflita exatamente isso. O que posso dizer é que o subtítulo da obra é bastante justo. Harris usa de sua habilidade na escrita para convidar o leitor a seguir sua linha de raciocínio, procurando enxergar nas aptidões e tendências humanas nada além do produto de um cérebro falho, que se desenvolveu num universo imperfeito, lapidado para sobreviver em um meio ambiente social, como é o ambiente humano. Um passeio pela natureza nua e crua da nossa mente. Mas se você está imaginando que vai encontrar uma série de explicações e resumos de experimentos que demonstram tudo isso, lhe aviso que isso não vai acontecer. Harris constrói mais um texto reflexivo (e aí você reconhece a pesada influência da filosofia permeando toda obra) com pouca liberdade descritiva.

A obra tem mais de trinta páginas de referências, o que a torna riquíssima, mas não espere encontrar um aprofundamento na maior parte delas. A caneta do autor prefere lhe convidar para seguir uma linha de raciocínio pela ética e pela moral, apenas recorrendo às citações para fortalecer algumas conclusões ou certos pontos de vista. Não que a obra não tenha alguma história. Pelo contrário, ele vai abordar uma narrativa mais descritiva aqui e ali, conter inclusive suas próprias experiências, mas tenha consciência que ele prefere desenvolver seu próprio pensamento, e faz isso com bastante minúcia. Seu passeio sobre a crença, seja em tribos primitivas seja entre cientistas renomados, é a cereja no bolo. Ela é explorada amplamente, e ele dedica um bom tempo para dissecar o talvez paradoxal "ciência x religião".

Seu discurso é ácido, e você nota no texto. Mas para um autor reconhecido pelos seus embates em programas de televisão, não é surpresa que aconteça assim no papel. Harris não flui tão suave, apesar de ter um jeito simples de escrever. Ele não tem a caneta fácil você encontra num Sagan ou num Dawkins, e não posso sequer dizer que é por causa de seu terreno pouco explorado. É uma leitura que, para ser bem digerida e aproveitada, leva um tempo. E esse tempo é medido pela sua disposição em acompanhar o caminho do autor. Uma obra que serve para exercitar seu poder de lógica e raciocínio dentro do universo da ciência, da moral e da crença. É um texto que não deve deixar uma impressão muito forte depois de terminado, mas que pelo menos vai lhe dar alguma coisa pra pensar. 


quinta-feira, 3 de outubro de 2019

O Mundo Assombrado pelos Demônios



Se você já acompanha meu blog, então você já chegou aqui com um interesse por literatura de divulgação científica. Pois bem. Estamos nos referindo agora a um dos autores mais conhecidos sobre o assunto, e provavelmente a inspiração de muitos divulgadores científicos da atualidade. São poucas as pessoas que se interessam por ciência e nunca tenham ouvido falar do astrônomo Carl Sagan. Se você é uma delas, então segue um excelente conselho sobre este simpático americano: leia-o.

Sagan popularizou-se pela sua notável série de televisão Cosmos, um verdadeiro fenômeno em termos de uso de veículos de comunicação para ensinar sobre ciência. Além de ter sido extremamente bem sucedida, com uma audiência absurda (numa época em que a televisão reinava absoluta como meio de comunicação áudio-visual) e extremamente bem conceituada. Talvez este seja o maior exemplo que temos de como é possível levar ciência de forma simples e eficiente para centenas de milhares de pessoas, tendo obviamente como carro chefe um apresentador carismático e sorridente como Sagan era, além de cientista.

Se ele se notabilizou por seu programa de televisão, não deixou a literatura por menos. No seu Mundo Assombrado pelos Demônios, Sagan deixa um pouco de lado seu ímpeto de mostrar e deslumbrar o público com ciência para se dedicar a uma parte menos exuberante, mas não por isso menos importante, que é mostrar como ciência funciona. O título, por exemplo, faz uma alusão ao teor geral que vai nortear todo seu texto. Tomando uma postura mais ativista, Sagan decide permear o mundo das crendices, lendas, conspirações e toda sorte de pseudociência que está espalhada por aí.  Mas seu volume não consiste somente neste raso terreno pouco amistoso. Entendendo que atacar as pseudociências de direta não é, digamos assim, rentável, ele decide trabalhar no delicado universo de como pensar sobre o mundo. De certa forma, está aí o diferencial de seu texto.

Com uma narrativa cativante e simples, embasada na sua gigantesca experiência, Sagan nos apresenta um volume ambicioso. Aqui seu objetivo é mostrar o raciocínio cético a respeito das informações a que temos acesso, e ele não poupa espaço para fazer isso. Sustentado em dezenas e dezenas de relatos bem escritos e curiosos, desde alucinações até alienígenas, Sagan vai conduzindo o leitor nestas histórias e ao mesmo tempo lhe convida para que raciocine de forma imparcial sobre cada uma delas. Numa tacada de mestre, Sagan envolve o leitor na forma como um cientista pensa, acompanhando-o na sua análise sobre cada uma destas questões. Talvez este seja o livro mais popular que se tem hoje que nos apresenta de forma clara às famigeradas falácias. Ele entendia que a nossa capacidade de discernir o certo do errado estava centrada no discurso na qual a informação estava inserida, e que precisávamos aprender a reconhecer argumentos falhos, para assim ativar nosso precioso "desconfiômetro" e não se deixar enganar. Sua obra apresenta um vasto ensaio na refinada arte de detectar mentiras (e isto é um dos nomes do capítulo de seu livro).

Seu texto é uma verdadeira ode à ciência e ao pensamento científico. Merece uma leitura inicial completa para garantir uma imersão mais efetiva na arte de pensar ceticamente. Não sendo apenas uma dentre muitas, o Mundo Assombrado pelos Demônios é leitura altamente recomendada para quem quer dar os primeiros passos em desenvolver uma visão crítica sobre o mundo. E a caneta de Sagan fez escola. Não exagero em imaginar que sua obra foi inspiração para dezenas de divulgadores científicos que lhe seguiram.

Disponível na versão pocket da série Companhia de Bolso, da Companhia das Letras, o livro é elegante, em páginas foscas e amareladas. Para economizar espaço, o espaço entrelinhas é reduzido, mas a fonte destaca-se de forma elegante. Não terá problemas na leitura. As quase quinhentas páginas simplesmente desaparecem pelo formato reduzido da obra, trabalhada num ritmo agradável que convida à leitura rica e continuada. Você vai gostar.

domingo, 29 de setembro de 2019

Pura Picaretagem - como livros de esoterismo e autoajuda distorcem a Ciência para te enganar. Saiba como não cair em armadilhas!


Diante de como a informação tem sido passada atualmente a todo instante com uma velocidade incrível via redes sociais, sem nenhum tipo de critério, uma leitura assim torna-se praticamente obrigatória. Se imunizar contra informações erradas e saber identificar as pistas que nos levam a descobrir que notícias foram exageradas, deturpadas e até inventadas, termina se tornando a única alternativa para não ser deixar enganar. Precisamos começar a separar o joio do trigo, e com certa urgência. A melhor maneira de fazer isso é exercer o raciocínio crítico, e uma leitura dessas tende a se tornar um bom começo.

Primeiro, preciso lhe avisar que o termo Ciência que se destaca no anormalmente longo subtítulo da obra na verdade não é essencialmente sobre as ciências, mas sim sobre física. A obra se concentra em tentar explicar e desmistificar conceitos de física que são usualmente deformados, como as palavras quântico e incerteza. A proposta da dupla de autores, o físico Daniel Bezerra e o jornalista de assuntos científicos Carlos Orsi, é justamente trazer ao leitor o real significado destes termos e de outros, que são usados à exaustão por charlatões e picaretas de marca maior.

A obra lhe introduz a uma definição de ciência no marco da Revolução Científica, com Galileu e em seguida com Newton. É concisa e não exige muito do leitor. Ela flui calma e suave, nas sua curtas páginas. Em seguida, o livro começa a pegar seu ritmo e então nós imergimos em uma narrativa histórica bastante descritiva sobre a história das descobertas precursoras do conceito físico de quanta, para enfim entrar no tema. A intenção dos autores é explicar o que realmente o termo quântico quer dizer, partindo dos descobridores, descobertas e suas consequências.

O texto continua, intercalando explicações com gráficos e esquemas para tornar a narrativa mais digerível. O leitor vai passar pela história do átomo, pelo princípio da incerteza e vai até conhecer alguns esquemas que os autores utilizam para tornar alguns experimentos mais inteligíveis. Você vai se deparar com algumas equações, mas não se desanime por causa disso. Além de serem bem simples, seu entendimento completo não compromete a obra. Ao final do volume, os autores selecionam algumas afirmações dúbias mais frequentes e tecem comentários sobre sua plausibilidade.

A parceria de Daniel Bezerra e Carlos Orsi é uma boa iniciativa, e resulta num livro de fácil leitura. Hoje, Carlos Orsi é o redator-chefe da Revista Questão de Ciência, do Instituto que leva o mesmo nome, cujo objetivo é esclarecer sobre metodologia científica e combater pseudociência. Eu particularmente acho que o título poderia deixar claro que trata-se de uma obra pensada para informar sobre conceitos específicos da Física, e não de ciência em geral, que são comumente mal utilizados como jargão que legitima qualquer coisa. Eu esperava encontrar algo um pouco mais amplo, envolvendo outras ciências. Mas não deixa de ser um bom exercício sua leitura.

Editado pela LeYa, o livro é pequeno, com folhas foscas e amareladas. Tipografia confortável, com número de páginas na lateral, ao invés do canto inferior direito de cada folha. Possui uma bibliografia concisa, incluindo alguns sites.  

domingo, 22 de setembro de 2019

Por que mentimos - os fundamentos biológicos e psicológicos da mentira


Meus amigos, que livro!

Foi a primeira vez que encontrei uma obra capaz de discorrer sobre a natureza generalizada do impulso de mentir, saindo de um âmbito puramente ético, social e moralista, para entrar pelo terreno da biologia e psicologia. Até então, imaginava que alguém já teria escrito um volume sobre esse tema, e era questão de tempo para achar. E finalmente terminei achando.

Esta é uma obra que merecia com certeza um maior destaque. Foi difícil conseguir o livro, e somente o encontrei através da sebo Estante Virtual. Por ser um assunto amplo, complexo e que mereceria uma profunda revisão por diversas vertentes, imaginei que receberia um volume amplo, com algumas centenas de páginas. Para minha surpresa, o pacote no qual o livro estava embrulhado era modesto em grossura, e seu conteúdo ainda mais fino. O livro mal preenche duzentas páginas.

Para meu deleita, a primeira parte da obra se dedica à mentira generalizada que se encontra na natureza, expressada por diversas espécies animais. É uma narrativa magnífica, de encher os olhos. Primeiro ele define o conceito de mentira e a coloca como uma das estratégias mais bem elaboradas do reino animal. Por exemplo, a camuflagem, quando um animal fica quase invisível em um pano de fundo de tonalidade e formas  semelhantes, é considerada uma estratégia baseada em mentira. Sendo um predador, sua mensagem é clara: eu estou aqui, mas estou mentindo, fazendo você crer que não estou. Outros exemplos parecidos ilustram ainda mais a noção de que a mentira é amplamente utilizada por dezenas de espécies animais.

Neste caminho, o autor vai discorrer sobre as vantagens das mentiras eficientes e sua vantagem evolutiva, caminhando inclusive sobre aspectos genéticos e a mentira sob a ótica de animais sociais e do altruismo. Saindo um pouco do terreno puramente biológico, chega a vez do psicológico tomar a narrativa. Então vemos uma verdadeira e profunda análise humana, de nosso impulso instintivo em transmitir informação, acrescida de nossa falha de perder a precisão no meio do caminho. David Livingstone Smith é um professor de psicologia na Inglaterra, e o assunto rende bastante neste terreno onde ele está confortável. Encaramos as questões sociais da mentira, como um mal necessário em algumas circunstâncias, sobre blefes, a mentira como arma e a mentira como defesa. E chegamos até o conceito de auto-engano, quando somos tão bons em mentir que até mesmo acreditamos em nossas próprias mentiras.  É verdadeiramente primoroso. A obra termina com uma boa dose de referências científicas que dão suporte a cada um dos capítulos.

Escrita num estilo simples e convidativo, a narrativa flui agradável e prende sua atenção. O autor sabe deixar ganchos que instiguem o leitor a continuar. O texto é tão informativo quanto reflexivo, e isso é um brinde aos leitores que gostam tanto de ver dados como opiniões. Isso confere um equilíbrio que torna a leitura ainda mais natural.

Publicado por uma parceria da Elsevier e da Editora Campus, é uma obra que você não esquece. Cheguei a recorrer a ela mais de uma vez, para meus próprios estudos. Um livro que deveria ter sido bem mais divulgado e destacado, mas que infelizmente ficou pouco conhecido e passou batido pelo grande público

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Cartas a um Jovem Cientista



Escrever para o público em geral parece ter caído nas graças de Edward Wilson. Somado a isso o fato de estar ciente de que a carreira científica mostra-se um desafio que não cabe nos ombros de muitos (falando inclusive como aluno e mestre) ele parece ter tomado a si a responsabilidade de esclarecer um pouco o universo do cientista. Especialmente para aqueles que desejam ingressar neste terreno.

Wilson viveu uma vida produtiva e recheada de oportunidades. Demonstrou desde cedo o gosto pela ciência, e construiu uma carreira sólida e respeitável. Depois de trilhar os caminhos de estudante, pesquisador e orientador, enfim decidiu compartilhar um pouco de sua vasta experiência conosco.

Nesta obra, Wilson faz uma retrospectiva crítica de sua própria jornada, para que ela sirva como um grande conselho aos futuros cientistas. Desde as curiosidades de sua infância e seu apetite inato para as maravilhas do mundo biológico, até seu posicionamento como o grande professor e pesquisador que se transformou. Note bem que a obra, apesar de apresentar traços biográficos, não se encaixaria muito bem em ser classificada como tal. Wilson tem consciência disso quando delineia suas ideias e lança sugestões voltadas especialmente para a juventude, naquele momento meio estranho, meio incerto, onde nossa mente vaga apenas nas dúvidas, nas incertezas do que fazer no futuro. Se você está na fase do "o que vou ser quando crescer", e tem uma quedinha, uma dúvida sobre ser ou não cientistas, então este livro é seu.

E os conselhos não são supérfluos, nem exagerados. A leitura da obra pode lhe dar uma bela amostra de quais devem ser suas características, caso você queira se tornar um cientista no mundo de hoje, e adicionada de sugestões práticas interessantes. Por exemplo, alunos que queiram ingressar na academia devem se vincular a professores e pesquisadores que possam lhe oferecer um excelente e produtivo laboratório de pesquisa. Estimula que o jovem cientista dedique algum tempo no meio de suas atividades para realizar pequenos experimentos informais, em especial para aguçar seu instinto em problemas específicos ou na arte de encarar perguntas e raciocinar sobre possíveis experimentos. Estas pequenas sugestões, para o leitor mais atento, vão fazer uma grande diferença no aproveitamento desta obra. Esse é especialmente um texto para ser lido e compreendido nas suas entrelinhas, porque são nos detalhes que conseguimos absorver o melhor da obra.

Misturadas às suas experiências e conselhos, o livro não deixa o leitor desapontado no que se refere a conteúdo científico. Como sempre Wilson passeia por fatos e histórias que enriquecem o leitor, no brilhantismo que é sua escrita leve e agradável. Não raro você é presenteado com detalhes e descrições de fenômenos biológicos e naturais que só as mãos de um mestre perspicaz são capazes de apontar. Prepare-se para adentrar pesadamente no universo das formigas, a especialidade do autor. Desde suas impressionantes castas até o papel dos odores na comunicação, não serão poucos os exemplos escolhidos para ilustrar muitas de suas aventuras e seus conselhos.

Por fim, a obra encerra com uma pincelada sobre ética na ciência, que ocupam curtas duas páginas. Mas temos aí um Wilson direto e afetuoso. Talvez as duas páginas mais contundentes de toda a obra.

Publicado pela Cia das Letras, traz uma das capas mais originais que eu podia imaginar para um livro com este título. Livro fino e ilustrado, com tipografia confortável impressa em papel amarelado. Este volume é um verdadeiro presente para os leitores que admiram a escrita ligeira e rica de um dos maiores entomologistas de nossa época. E se você é um jovem cientista sequioso de alguns bons conselhos de um pesquisador experiente, achou o volume certo.

domingo, 15 de setembro de 2019

O que é a Evolução?


Este é um assunto que desperta o interesse de muitos leitores. Talvez seja o conceito científico mais popularizado e mais horrivelmente desfigurado de toda a história. É um dos temas de biologia menos compreendidos e mais polêmicos que podemos imaginar. O termo é usado de forma genérica, em filosofia, metafísica, religião. Não obstante, sua compreensão correta é o alicerce sobre o qual se estabeleceram as mais eficientes estratégias de produção de comida e combate a epidemias já aplicadas pelo homem. E mesmo assim, ainda hoje é um tema indigesto. O pior de tudo: muita gente pensa que sabe sobre o assunto, tendo apenas uma rasa leitura sobre textos muito genéricos e pouco precisos. Não se pode culpar ninguém por isso. A vida não é simples e nem fácil. Seus mecanismos também não. Levou décadas para que os cientistas começassem a entender os processos da evolução, e ainda hoje há muito a ser feito. Mas nada impediu Ernst Mayr de dar sua contribuição ao assunto. Unindo sua profunda compreensão do tema e sua habilidade de escrever para o público, nasce sua obra, a última a ser lançada no Brasil.

Publicada originalmente em 2001, Mayr contava com noventa e seis anos nos ombros. Lúcido e ativo, ele ainda iria contribuir com mais uma obra (Biologia, Ciência Única, publicada quando ele tinha 99 anos!) antes de falecer com um século de idade. Decidido a apresentar uma obra condensada, enxuta e ao mesmo tempo informativa sobre a evolução biológica, o autor faz questão de nos apresentar um sumário de tudo o que ele conhecia sobre as forças motrizes do espetacular processo que havia sido detalhado pelo naturalista britânico Charles Darwin. Hoje, a evolução é a base de toda a biologia. Se você quiser saber realmente sobre o que é verdade em relação a este assunto, sem preconceitos ou exageros, sem extrapolações desnecessárias ou excesso de imaginação, bem-vindo à obra certa.

Este é um livro para quem realmente gosta de biologia. Se você acha que precisa de uma visão mais superficial, mais geral, sobre um assunto que, na sua complexidade, vai passear por química, anatomia, probabilidades, então não vá com muita sede ao pote. Eu não pretendo com isso lhe desencorajar com a obra. O livro é sobre evolução, e as evidências que lhe corroboram e lhe dão sustentação estão espalhadas nestas outras áreas. Não há o que fazer. Entretanto, se você topar esse pequeno desafio, lhe garanto que a obra vai lhe dar uma visão real sobre o assunto. Você vai poder dizer finalmente que está começando a entender sobre o processo evolutivo. Ou pelo menos vai começar a identificar quando as pessoas usarem erroneamente esta expressão para passar alguma ideia bizarra.

O livro segue uma pauta muito didática sobre o assunto. Aborda sobre o surgimento e diversidade da vida, uma pitada de filogenia e embriologia, como sustentáculos da teoria da evolução. Depois ele se aprofunda no mecanismo, e dedica boa parte da explicação aos processos que afetam a evolução biológica, com especial atenção à seleção natural. Aqui o autor faz questão de elucidar alguns pontos que geralmente ficam mais obscuros, como a confusão sobre aleatoriedade na seleção e seus efeitos ao longo das transformações das espécies. Um prato cheio para entender melhor como funciona esse impressionante e complexo mecanismo. Aliás, a falta de compreensão adequada sobre a seleção natural é uma das maiores fontes de confusão a respeito da validade da teoria evolutiva. Aqui não tem desculpa: ela é apresentada de forma sucinta e clara, sem margem para outras interpretações.

Em seguida, Mayr adentra propriamente aos mecanismos da evolução. Ele oferece as bases genéticas do processo de diversidade e herança de caracteres. Digno de qualquer aula de biologia. Sua escrita procura tornar o assunto o menos árido possível, recorrendo a muitos exemplos e precisão na hora de escolher as palavras certas para deixar o texto bastante palatável, evitando assim de fazer analogias que podem dar margem à diferentes interpretações. Suas frases aqui são construídas com cuidado. Sua obra pretende esclarecer, e ele faz questão que ela seja assim.

Neste momento, não dá pra evitar jargões mais técnicos. O leitor é apresentado à conceitos pouco comuns no cotidiano, como especiação parapátrica, simpátrica, ou fluxo gênico. Mas se seu objetivo é entender sobre a evolução biológica, precisa aceitar o fato de que conhecer pelo menos alguns destes termos é necessário. E eles são apresentados um a um, devidamente esclarecidos. A obra inclui alguns quadros que se propõe a dar uma explicação particular sobre certos termos ou definições. É aconselhável acompanha-las.

Ao final, Mayr se desbruça sobre um tema de seu agrado: a evolução humana. Se você gosta do assunto, este capítulo é um presente em especial. E não esqueça de ler os apêndices. O autor apresenta as mais recorrentes críticas à evolução e responde a algumas dúvidas igualmente comuns. São trezentas e poucas páginas sobre um dos temas mais interessantes da biologia.

Publicado pela Rocco, o livro é impresso em fonte branca com tipografia simples. A obra é ilustrada com figuras e esquemas que realmente ajudam a entender certos conceitos. Enriquecida com o estilo gracioso de Mayr, o livro cumpre o que promete, e não desaponta ao leitor de popularização científica. 

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

O Golem - o que você deveria saber sobre ciência



Confesso que esse título me deixou intrigado.

Folheei o livro algumas vezes antes de decidir comprar. Depois então entendi o que ele quis dizer. Mas preciso dizer que o subtítulo poderia ter sido melhor pensado, para fornecer uma ideia mais clara dos objetivos dos autores. A alusão ao Golem, o monstro que é descrito como sendo feito de barro, argila ou até pedra, da mitologia judaica, que foi criado por um feiticeiro para proteger os judeus da perseguição, é pelo menos criativa. Harry Collins e Trevor Pinch decidiram escolher esta criatura porque ela é representada como sendo um ser com força monstruosa, mas completamente dependente das ordens dadas pelos processos mágicos que lhe deram vida. O Golem não é dotado de livre arbítrio, e por isso pode portar-se como uma criatura inofensiva e ingênua, ou um monstro destruidor e selvagem, de acordo com as ordens que receba. É justamente nisto que fica a comparação.

A obra é um apanhado de casos controversos de ciência, desde sua origem até suas críticas, das pessoas envolvidas e da reação da imprensa e do público. Vamos encontrar aqui detalhes de interpretação de informações de controversas experiências de transferência química da memória feita com planárias. O épico experimento de Louis Pasteur, que teria provado definitivamente a teoria da biogênese e por fim martelado o último prego sobre o caixão da geração espontânea, numa narrativa que apresenta um ponto de vista mais político e menos experimental do que esperamos que tenha sido. A polêmica gerada por uma falsa história imensamente alardeada, sobre a inacreditável tecnologia que teria permitido aos físicos descobrirem a fusão a frio. E outros casos menos conhecidos, que são explorados pelos autores na obra.

O volume se concentra fundamentalmente no elemento humano que protagoniza todas estas histórias, a peça mais falha da equação científica. Os autores exploram o contexto, as motivações, as influências e pactos que nortearam muitas decisões e motivações dos principais atores em cada um dos episódios. Não encontramos uma análise profunda da ciência por trás, mas sim o que norteou a elaboração e interpretação dos resultados que eles obtiveram. A única coisa que une a todos é a proposta científica experimental dos exemplos escolhidos. A ciência neste contexto é o Golem. É o gigante atrapalhado que foi mal conduzido por homens falíveis em episódios com diferentes graus ou níveis de responsabilidade pelo que estavam fazendo. Encerram a obra com uma defesa do método científico, e uma boa apologia de como a mesma deve ser tratada tanto pelos cientistas como pelo noticiário público, que frequentemente adiciona exageros ou deformações.

Publicada pela Editora Unesp, o volume é confortável, com tipografia mais arredondada impressa sobre papel amarelado fosco. Vale a pena para servir como consulta de exemplos, mas não é daqueles livros que lhe marcam e vem rapidamente à sua mente. A narrativa não chega a ser empolgante, mas por se concentrar no aspecto mais humano das histórias, mantém um ritmo razoável.

domingo, 8 de setembro de 2019

O Guia Contra Mentiras - como pensar criticamente na era da pós-verdade



Quando encontro qualquer literatura que estampa na sua capa a palavra guia, eu instintivamente enxergo com olhos pouco amistosos. A primeira imagem que surge em minha mente é de um livro sobre turismo, ou sobre receitas de doces ou pratos rebuscados. Pequenas regras separadas em tópicos, com uma proposta única de fornecer a você o mínimo para reproduzir algo, ou informações básicas sobre a proposta do guia. Algo como uma fórmula, que no meu enxergar tira o prazer de uma leitura continuada e reflexiva, que é o que eu busco num livro. Olho novamente, e me deparo com o convidativo subtítulo. Nos tempos atuais, o pensar criticamente é altamente desejável. Se a obra se propõe a isso, vamos dar uma chance a ela.

Devo confessar que devorei o livro, e não me arrependo. Daniel J. Levitin é um professor de psicologia e neurociências, que julgou por necessário colocar em texto uma série de recomendações que pudesse nos ajudar a enxergar melhor as informações que diariamente nos passam pelos olhos. É aí que repousa seu conceito de guia. Mas não espere um texto salpicado de pequenos conceitos, ou subdividido em dezenas de recomendações. Ele trabalha convidativamente as partes de sua obra de acordo com os tipos de informação que nos são apresentados. Sua escrita flui muito fácil e ele adiciona uma pitada de humor aqui e ali, intercalando com sua enxurrada de dados e informações. Uma grande vantagem é que o autor sabe dosar a caneta, e se policia para que seu texto não avance para um terreno mais especializado, mais árido. Esta é uma obra que agrada todo mundo.

Dedicando boas páginas ao mundo dos números (e mesmo que ele lhe convide a prestar atenção em alguns cálculos, não perde o ritmo se detendo em detalhes), o autor nos mostra como dados podem ser apresentados visualmente, de maneiras bem diferentes. Especialmente de acordo com que tipo de informação você quer apresentar. Ele pontua aspectos práticos da construção e interpretação de gráficos, fazendo uma crítica ajustada sobre seu poder explanatório. Um conselho e tanto. Eu convivo com gráficos o tempo todo, e esse tipo de literatura é um pequeno oásis no meio do deserto. Ele consegue ser mais claro e objetivo do que muitos especialistas na área, com um texto rico, fácil e delicioso de acompanhar.

Um tópico que não posso deixar de mencionar é sua capacidade de associar seus conselhos com nossos claros defeitos de interpretar informações. Ponto positivo para o autor, que seleciona muito bem onde encaixar seus exemplos envolvidos pelo seu profundo conhecimento sobre neurociências. Mas não se preocupe, ele sabe se exprimir na medida certa para fazer você entender onde nosso cérebro está errando, sem recorrer a uma possivelmente cansativa e desnecessária descrição técnica. Ele não quer isso, e você também não.

Preciso destacar dois aspectos muito positivos da obra. O primeiro deles é o espaço que ele dedica para destrinchar o conceito de especialista, e o nível de confiabilidade que podemos (ou devemos) conceder diante das supostas afirmações de um. É soberbo como ele aborda o assunto, mostrando que um especialista em uma área não significa que sua opinião seja razoável, ou mesmo inteligente, sobre outros temas. O segundo é que ele destrincha bem o que é ciência, e casa sua narrativa com o melhor da compreensão sobre o método científico, especialmente como critério para se avaliar a plausibilidade de qualquer argumento ou opinião que nos chega aos ouvidos.

Publicado pela editora Objetiva, o livro é pequeno e confortável, recheado de ilustrações em preto e branco, com páginas amareladas e foscas. A tipografia casa bem aos olhos e a leitura flui agradável. Quando digo que ele é fácil de ler, não estou exagerando. Li a primeira metade da obra em uma interminável fila de espera no médico, e terminei a segunda metade em um hotel, durante uma viagem. E mais um último conselho: se você é professor, eu recomendo usar os exemplos do livro em suas aulas.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

O Sentido da Existência Humana



Existem basicamente duas coisas que despertam meu interesse em uma obra: a primeira é o título e subtítulo, e a segunda é o autor. Com o tempo, você vai se acostumando com os estilos de certos escritores com os quais se depara rotineiramente, e isso lhe impulsiona quase que instantaneamente para uma obra sua, mesmo que o título não seja lá essas coisas. O inverso também vale: títulos chamativos, criativos, instigantes, feitos por desconhecidos podem valer muito a pena. É um risco que você se permite correr. Foi correndo esses riscos que eu me deparei com bons divulgadores científicos. Entretanto, quando as editoras casam em combinar um nome conhecido com um título criativo, é a senha para o sucesso da obra. Quando um dos dois soa estranho, você hesita bastante, até decidir se vale a pena ou não a leitura. Neste caso, o autor foi quem motivou meu interesse pelo livro. O título não.

Edward Wilson é um biólogo especializado em formigas, e um escritor de divulgação científica. Já deu o ar de sua graça no blog, onde você pode ler a resenha de sua outra obra clicando aqui. Wilson escreve sobre suas experiências na ciência e agrega com seus profundos conhecimentos de biologia e diversidade. É divertido acompanhar seu estilo simples e bem trabalhado, recheado de curiosidades e informações. Você se acostuma a enxergar em Wilson um escritor de assuntos biológicos. Mas não está muito preparado para encontrar um Wilson filosófico, que se propõe a explicar o sentido da existência humana. Tenho um certo receio de livros que apresentam títulos tão amplos e passíveis das mais diversas formas de intepretação, justamente porque você se depara com um terreno menos sólido. Você simplesmente não sabe o que vai encontrar pela frente. O autor me fez enfrentar o desafio. Vamos ver o que um zoólogo tem a dizer sobre o tema.

Wilson, assim como em outras obras, não desaponta. Ela está carregado de sua visão biológica do mundo, e é com base na sua experiência como biólogo, como zoólogo, que ele propõe enxergar a humanidade com bases bem mais científicas. É um ponto de vista intrigante e que valoriza as forças naturais sobre o que nos torna nós mesmos. Passeando no cerne biológico de conceitos como altruísmo, evolução social e nossas características como espécie, o autor apresenta um retrato bem mais factual, mais reducionista e mecanicista sobre a natureza humana. É neste ponto que o título, a princípio desconexo com o que se esperaria da obra deste autor, nos dá uma reviravolta: o tratado de Wilson não discorre sobre a metafísica de nossa existência, mas sim sobre um apanhado do que se conhece sobre nossa natureza.

Sem perder sua “pegada”, o autor não evita de abordar assuntos já tratados em outras obras, como a ameaça provocada pelo homem à biodiversidade, continuando sua campanha pessoal pela conscientização sobre o meio ambiente. Ou discorrendo sobre a natureza da comunicação entre os organismos. Mas neste volume, Wilson ousa traçar linhas de cunho mais pessoal, mais reflexivo, onde fica claro que seu texto reflete sua opinião pessoal, sua forma única de enxergar o mundo. Ele desenvolve seu texto sobre a natureza de nossa mente, a religião, o livre arbítrio e sobre vida extraterrestre. Aqui não espere encontrar um homem muito diferente do cientista. Sua visão foi moldada seguindo a prudência e sistemática do método científico, e ele traz as reflexões com o mesmo tato que abordaria um artigo especializado. Talvez você ache que ele pode ter exagerado ou feito extrapolações demais em algumas inferências. É possível. Mas lembre-se que a obra foi publicada em 2014, quando ele já tinha oitenta e cinco anos de idade. Noto isso em muitos cientistas hoje. A partir de determinada idade, seus textos ficam mais reflexivos, abordando assuntos mais extensos e variados. O autor toma gosto de expor seus pontos de vista, e fica menos amarrado para expressar suas opiniões. Como diria um filósofo amigo meu, “a partir dos setenta anos, eu não tenho mais receio de falar o que quiser”.

Publicado pela Companhia das Letras, o livro vem encapado num azul escuro berrante, onde o nome do autor se destaca com a letra branca contrastando sobre o fundo azul. Páginas amareladas e foscas, com tipografia e espaçamentos elegantes. Um livro confortável de pouco mais de cento e cinquenta páginas e tamanho justo para leitura em qualquer ambiente.