sexta-feira, 19 de novembro de 2021

O Kindle


Enfim, me rendi.

Decidi adquirir um Kindle.

Depois de ver a experiência de minha esposa (uma leitora compulsiva, como eu) com um leitor de ebooks, decidi experimentar por mim mesmo. Ainda relutante, eu evitava sempre que podia. Até que surgiu uma promoção quase irrecusável. Cedi à tentação, e decidi comprar. Não demorou muito e chega o pacote pelos correios. Eu abro e me vejo tateando o pequeno objeto. Não exagero em dizer que me senti como um indígena isolado que, pela primeira vez, entra em contato com um espelho. Acreditam que eu cheguei até mesmo a cheirar aquela geringonça?

Passado o primeiro contato, seguimos para ligar o aparelho e ver suas funcionalidades. Embora seja bem intuitivo, ainda precisei de auxílio para configurar o tamanho das fontes e brilho da leitura. Depois de tudo configurado, e entendendo inclusive como se faz a compra de novos ebooks, decidi iniciar minha experiência de leitura.

Para quem é acostumado com livros físicos, como eu, ler no kindle é bem menos traumático do que aparenta ser. Eu imaginava que não conseguiria me adaptar à leitura sem ter a sensação do “passar de páginas” ou mesmo de sentir minha evolução no livro sem um clássico marcador. Não perceber o tamanho de um livro me pareceu desafiador. Por isso, para uma leitura rápida e experimental, comecei com algo bem leve. Visitando a livraria virtual, encontrei um volume de terror composto de histórias bem curtas, bem ao estilo de minhas leituras casuais. Vamos começar por aqui.

Bem, vou tentar descrever com o máximo de detalhes que eu puder, como é ler num kindle pela primeira vez. Antes, preciso esclarecer que eu trabalho a maior parte do tempo num computador, onde consulto com frequência sites com diversos textos, ou artigos em formato PDF. A sensação, embora não seja igual, é ligeiramente parecida. Ler em um kindle é o equivalente a ler um twitter ou um texto de facebook, sem a forçada luminosidade da tela do notebook, smartphone ou PC. Você ganha o conforto de uma leitura equivalente ao livro, com a vantagem de poder escolher o espaçamento das linhas, e perde o desconforto de estar focado por muito tempo em uma tela clara, ajustando o brilho. Quem é acostumado a ler textos no computador passando a barra de rolagem lateral, ou ler textos no smartphone dedilhando o touchscreen não deve sentir dificuldade em se acostumar com o kindle. Cada página passa à dedo, e você pode retornar com relativa facilidade. Textos continuados são especialmente mais confortáveis de se ler. E eu confesso, que logo nas primeiras páginas, simplesmente não fez diferença para mim se estava lendo um livro físico ou não.

Confortável à mão, o kindle não desaponta. Não lembro de quanto tempo demorei para ler os contos de terror, mas foi relativamente rápido e agradável. Comecei então a procurar livros de ciência, e confesso que foi aí que eu caí numa armadilha. Tive a fatídica ideia de aproveitar um feirão de livros virtuais, e passei quase dois dias antenado com as promoções relâmpago. Eu perdi a noção de preços e fui comprando quase que compulsivamente, os volumes que me interessavam e que estavam em promoção (poucos, felizmente). Eu posso dizer que, literalmente, paguei caro pela minha impulsividade. Mas agora eu tinha um estoque razoável de livros que vão me distrair por um bom tempo.

Como é ler um livro e não ter o prazer de vê-lo colocado em uma prateleira? Eu confesso que não senti nada em relação a isso. E eu achei, no primeiro momento, que eu teria um sentimento de frustração quanto a isso. Mas fico feliz em dizer que não. Não poder “ver” o livro na prateleira não me afetou. A leitura no kindle é facilmente adaptável e o fato dele ter um potencial de armazenamento gigantesco é uma vantagem impressionante, especialmente para leituras rápidas ou sossegadas, especialmente em viagens, quando você quer economizar espaço.

Sim, o kindle veio pra ficar, e promete ser uma alternativa muito boa para os livros físicos. E eu acho que ele não se popularizou ainda porque seu preço é bem salgado, bem como a compra de ebooks exige, pelo menos a princípio, um cartão de crédito. As diferenças de preços entre volumes físicos e volumes virtuais também não é significativa. Há casos até que o livro virtual é um pouco mais caro. Mas hoje, no caso de ambas as versões sejam vendidas pelo mesmo preço, eu não me envergonho em dizer que prefiro comprar a versão ebook. A compra é imediata e o livro torna-se disponível para você em segundos.

Ainda me considero um saudoso de livrarias. Tenho prazer de passear por elas contemplando as estantes. Gosto de ter o livro em mãos e folhear suas páginas. Mas hoje, já me pego com um novo hábito: tirar a foto do livro e procurar sua versão ebook, seja porque ela seria mais barata, seja porque ela economizaria mais espaço. Embora consiga ler livros de divulgação científica sem maiores problemas, não me enxergo consultando livros-texto ou livros especializados de minha área em um kindle. Talvez seja porque nunca precisei, e nem tentei. Isso apenas para dizer que o kindle encontrou seu espaço no coração dos leitores, mas com certeza não vai aposentar, em cenário algum, o bom e velho livro impresso.


 

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Outras mentes – o polvo e a origem da consciência


Como biólogo, a consciência é uma das coisas que mais me fascina. Sua origem, como funciona, e como ela nos tornou o que somos hoje. Quando encontrei esse livro, e percebi o curioso desenho de um tentáculo na sua capa, não pude evitar de me aproximar. Na minha graduação, eu era fascinado por moluscos, especialmente os polvos. Me impressionava a maneira pela qual eles eram tão simples, ao mesmo tempo incrivelmente complexos e inteligentes. Inclusive estagiei no Museu de Malacologia (ciência que estuda os moluscos) da minha universidade. Enfim, boas lembranças surgiram, e com certeza inconscientemente me motivaram a arriscar a leitura deste texto.

O mais curioso de tudo, é que o livro não é escrito por um zoólogo, como seria de esperar. Peter Godfrey-Smith é um filósofo, e historiador da ciência. Não consigo imaginar um casamento autor-obra tão improvável nas minhas leituras recentes. Pois bem, preconceitos à parte, vamos ver o que um filósofo tem a nos contar sobre zoologia. E cá pra nós, eu tenho uma boa base teórica de moluscos, uma vez que também ministro essa disciplina na graduação. Portanto, minha leitura da obra é respaldada no meu conhecimento científico (embora não especialista) do grupo, e consigo enxergar se houver algum disparate neste sentido. E já me preparava para o pior: uma enxurrada de reflexões filosóficas baseadas em visões superficiais sobre a inteligência de um polvo. Típico de textos de auto-ajuda. Já de antemão pensei ter entrado numa fria.

Começando a obra, tive uma grata surpresa. O livro é exatamente o oposto do que eu pensava, e fiquei muito agradecido por isso. Escrito numa linguagem muito atraente, o autor nos apresenta uma história concisa e nem um pouco cansativa sobre os primeiros organismos e sobre os moluscos. As primeiras partes nos deleitam sobre as interações dos organismos com seu meio, desde os microscópicos organismos até os invertebrados mais complexos. O texto traz em sua narrativa uma boa dose de realidade de como as coisas aconteceram, segundo evidências científicas, na melhor receita de livro sobre ciência, no melhor de um livro voltado para não especialistas. E é narrado de maneira muito agradável.

Entrando nos moluscos propriamente ditos, adentramos a um capítulo repleto de informações sobre evolução e origem destes animais. É um texto digno de uma aula, com direito a esquemas evolutivos e tudo mais. Foi com grande e saudoso prazer que eu li cada página desta parte da obra, relembrando e confirmando as informações contidas aí com os textos básicos de cursos de biologia. E o melhor, descrito numa linguagem bem mais atraente. E essa introdução é necessária, já que o foco de todo o resto do texto é concentrada nos polvos. Mesmo quem não é muito interessado por zoologia deve achar o texto agradável.

Adentramos então para o grosso da história. O livro é narrado com uma mistura das pesquisas recentes que exploram a inteligência e memória dos polvos, junto com as experiências de mergulho do próprio autor, quando encontrou e passou a frequentar com assiduidade a pequena polvópolis, um reduto relativamente incomum para dezenas de pequenos polvos. E nesse contexto, ele desenvolve suas ideias sobre a consciência, especialmente baseado em experimentos comportamentais realizados com esses invertebrados. É muito interessante como ele narra essas pesquisas, criando um contexto de curiosidade que teria motivado os cientistas a fazerem suas perguntas. É raro encontrar livros que apresentam resultados científicos desta maneira. A leitura torna-se muito mais agradável.

Sobre comportamento e memória, entramos em questões mais complexas. O jogo de cores e formas que os polvos e sépias possuem é fartamente investigado, bem como sua incrível capacidade de solucionar problemas. O texto não desaponta nesse sentido, nem quando precisa fazer analogias com pesquisas com outros animais. A obra não deixa de ser elegante nem quando aborda alguns eventos polêmicos e ainda obscuros sobre a possibilidade destes invertebrados sonharem. E aqui o autor adota uma boa dose de prudência ao fazer suas interpretações, o que é um ponto positivo do livro.

O toque pessoal é sentido de longe. Peter intercala suas observações amadoras com dados científicos (todos citados na bibliografia), chegando a se aproximar emocionalmente dos animais. Ao narrar suas aproximações dos polvos, ele cria um laço forte com os invertebrados, testemunhando suas caçadas, brigas territorialistas, buscas por parceiros, e torna-se capaz até de reconhece-los individualmente. Neste sentido, o livro torna-se o que eu chamaria de experiência literária do documentário Professor Polvo, ganhador do Oscar. E neste sentido, recomendo ambos.

Publicado pela Editora Todavia, o livro é pequeno e agradável para leitura casual, em fila de banco, ou em uma praça ou cafeteria. Possui folhas foscas e amareladas, com fonte muito confortável. Além de ilustrações sobre evolução dos polvos, o volume nos brinda com belíssimos encartes coloridos de sépias e polvos. É uma leitura atraente e muito enriquecedora, especialmente para quem gosta de zoologia, de quem realmente tem o talento para escrever. E a bela história dos polvos e da consciência não podia ter um narrador mais diferente, e ao mesmo tempo mais adequado.


 

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Sapiens, uma breve história da humanidade

 


Finalmente, cheguei neste best-seller internacional (como a própria capa faz questão de enfatizar).

Talvez essa resenha esteja vindo muito tarde, um longo tempo depois de que a febre do livro surgiu, chegou no ápice e já foi basicamente enterrada, sendo substituída por outros títulos do mesmo autor, que também já encontraram seu apogeu. A fama deu a Harari uma posição privilegiada entre oradores, palestrantes e escritores sobre filosofia e história humana, e lhe rendeu mais alguns volumes, que de longe não alcançaram o prestígio e destaque de Sapiens. E, chegando a minha vez, pretendo mostrar pra você, que acompanha meu blog, razões para ler, mas não necessariamente confiar, neste livro.

Se eu fosse dizer uma razão pela qual Sapiens foi um sucesso tão grande, no meio de uma dúzia de livros sobre a história humana disponíveis por aí, eu de longe diria que é a maneira pela qual ele dividir o seu livro. O grande mérito do autor foi conseguir enxergar, dentro do período da história humana, os elementos chaves que realmente marcaram nossa evolução. Ao invés de obedecer um linha linear e já bem clichê sobre a evolução da nossa espécie, Harari decide arriscar em estabelecer os momentos chaves levaram às modificações fundamentais da Humanidade ao longo de sua história. E ao arriscar, ele acertou em cheio.

O autor decidiu separar seu livro em quatro partes, baseado no que ele mesmo chamou de revoluções. E, parando para pensar, realmente foram. A primeira grande revolução ele chamou de cognitiva. O investimento em um cérebro volumoso e complexo, capaz de interagir e realizar previsões sobre o mundo à nossa volta decididamente fizeram a grande diferença. E nisso Harari, como um bom contador de história, descreve de maneira suave e atraente. Os custos de um grande cérebro, as consequências intelectuais de uma mente capaz de abstrair muito além do que se pode enxergar, levando inclusive a armadilhas que nossa imaginação venha a nos pregar, e talvez até o surgimento do pensamento religioso. Harari parece se divertir com suas ideias neste caminho.

A segunda grande revolução foi a agrícola. E ela é praticamente um consenso entre os historiadores, como o próprio autor. A saída do nomadismo parece ter sido o estopim para o surgimento de civilizações mais complexas, e há centenas de textos que concordam com isso. E partindo justamente deste princípio, o autor entra na complexidade das sociedades, pincelando sobre como elas partiram de pequenos agrupamentos até cidades inteiras. E é justamente neste momento que Harari me decepciona bastante. É triste ver ele apelando para uma armadilha lógica que chegou a ser comum na minha época de graduação, sugerindo que o homem não domesticou as espécies, sejam animais ou vegetais, mas sim foi domesticado por elas. E usando argumentações biologicamente rasas, constrói um texto muito mais parecido com um ativismo ambiental do que uma visão mais próxima do que se tem dentro da ciência. Neste momento, a meu ver, seu texto perde muito sua força em credibilidade científica. A partir daí, eu continuo a leitura com um pé atrás.

O terceiro capítulo é sobre comércio. E aí ele parece acertar em cheio. As buscas e explorações, todas com boas motivações para mover a balança financeira para um lado ou para o outro, soam bem razoáveis. O movimento das massas humanas, procurando novos recursos, incentivando outros, construindo impérios, destruindo histórias. O grande papel da moeda na evolução do mundo é muito bem contada. Novamente, parece apenas um pouco forçado que tudo, neste capítulo, seja motivado exclusivamente pelo lucro. Não obstante, parece ser possível.

E no final, temos a revolução científica. Um sub-produto da primeira revolução, com certeza. O autor não economiza nas palavras para narrar a trajetória das modificações do mundo com base no investimento em ciência e nas grandes descobertas. Talvez algumas explicações para o investimento pesado em descobertas de regiões desconhecidas, narradas por Harari, pareçam um pouco simplistas, mas não deixa de ser um texto muito bem escrito e bem trabalhado. E nas revoluções científicas é que o livro termina, chegando nos remédios, tecnologias, biologia molecular, e reflexões futuras para a nossa história.

Publicado pela LPM, o livro físico é agradável em tamanho, com páginas brancas e fontes razoáveis em tamanho e formato. Possui algumas ilustrações em preto e branco. Harari não se tornou conhecido apenas pela sua história bem contada, mas também pelo seu estilo. Frases diretas, curtas, sem rodeios. Constrói o texto de forma que as páginas sempre parecem pedir que o sentido seja alcançado na página seguinte, o que instiga a leitura continuada. De fato, quase não senti as mais de quatrocentas páginas. Ele é um autor nato, e um escritor agradável. E é isso que deixo para você: Sapiens é uma leitura atraente e nem um pouco cansativa. Só não se esqueça que o texto não prima por correção científica em algumas partes. Fique de olho. 


sexta-feira, 11 de junho de 2021

Leitores esponja: não seja um deles

 


Se você nunca ouviu falar dessa expressão, não se preocupe. Ela é muito pouco usada. Para falar a verdade, eu mesmo quase nunca vi, e nem me recordo direito da primeira vez que li essa expressão. Mas seu significado é claro por si só. O leitor esponja é o leitor que absorve tudo o que ele lê. Isso mesmo. Funciona como uma típica esponja, ao “absorver” o conteúdo. O que ele pode reter dela, ele vai reter. Mas não confunda isso com memória eidética, mais conhecida como memória fotográfica. Não é isso. O leitor absorve o texto da mesma forma que uma esponja absorve a água. Não importa se a água seja suja ou limpa, a esponja vai absorver. O leitor também. O leitor esponja não tem filtro. E esse não deve ser o papel de um leitor.

O primeiro leitor esponja que conheci já era um homem bem maduro, umas boas décadas mais velho do que eu. Devorava livros, e dinheiro não parecia ser uma limitação para sua sede por textos. A princípio, costuma fazer citações das obras que tinha lido, mas logo se percebia que a memória, essa senhora tão relapsa, ora e meia lhe passava a perna. Não obstante, essa não era sua característica de um leitor esponja. Ela apareceu depois.

Um belo dia, o amigo me presenteou com uma obra. Sabendo que eu gosto de biologia, me repassou um livro de um geneticista, enfatizando que era um livro repleto de informações. Peguei o modesto volume e agradeci, prometendo fazer a leitura. Li a obra, o que não demorou muito, pois o livro era curto e muitos capítulos eram de informações básicas de biologia, o que não exigiu muito tempo de mim. Na oportunidade seguinte que encontrei meu amigo, dei minhas impressões sinceras: o livro era essencialmente a opinião do autor sobre um determinado ramo da ciência, ao invés de ser baseado em evidências científicas, e por isso não podia ser muito levado a sério. Ele pareceu chocado e enfatizou que o autor havia ganhado prêmios de biologia pelas suas pesquisas. Respondi que sim, que ele havia sido contemplado com alguns prêmios, mas não essencialmente em função da qualidade da ciência que havia produzido, mas por características técnicas relacionadas. E isso sem menosprezar o cientista. Curiosamente, ele não parecia entender minha crítica, já que o autor era enfático em muitas de suas afirmativas (muito pouco científicas, por sinal). Reforcei o que tinha dito, e ele continuou incrédulo.

Não é porque alguém publicou um livro que seu conteúdo seja certo, ou correto, no seu todo ou em parte. A primeira vez que tive essa lição foi ao ler Uma Breve História do Tempo, de Stephen Hawking, ainda na juventude. Fiquei fascinado com o texto e explicações. Alguns anos depois, conheci um astrofísico israelense. Durante nossa conversa, falei do texto com entusiasmo, e ele recebeu meu comentário com uma careta. Fiquei sem entender, e ele me explicou que nem tudo no texto necessariamente tinha suporte em evidências científicas da época, que haviam algumas especulações um pouco exageradas, que deveriam ser mais consideradas como opiniões pessoais. Eu não era versado em astrofísica, e por isso não podia identificar essas peculiaridades. Mesmo assim, a lição ficou. Guardei essa observação comigo e aplico em tudo que leio hoje em dia.

Meu treinamento foi paulatino. Você com certeza não precisa desse filtro quando está lendo uma ficção. Sem problema algum. Agora, quando você encara um livro que se propõe a falar sobre ciência, é necessário um discernimento. E você cria o discernimento durante a leitura, fria e pensada. Eu aplicava meus conhecimentos de faculdade (e os livros texto) para confirmar ou desconfiar de certas afirmações. Era trabalhoso, mas pelo menos me mantinha menos propenso a acreditar cegamente em qualquer afirmação somente porque ela está escrita, e no formato de livro. Quando você pega um leitor honesto, ele reconhece que parte do que está escrevendo são suas opiniões, e elas podem estar certas, assim como podem estar erradas. Um pensamento muito prudente, que aumente sua confiabilidade sobre o texto.

O leitor esponja não se incomoda com esse crivo. Para ele, se a informação está escrita no livro que ele está lendo é porque a informação está certa. Mesmo que isso seja o oposto do que ele aprendeu. Esse pequeno conflito entre o que foi aprendido x o que está no livro é uma coisa que precisa ser administrada. Isso é muito comum especialmente quando encontramos textos pseudocientíficos. A armadilha é justamente alinhar informações cientificamente precisas com informações não confirmadas. E isso é um prato cheio para enganar o leitor esponja. Há livros que são peritos nisso: misturar ciência séria com jargão científico de quinta categoria e criar um monstro de Frankenstein. Incutir a dúvida sobre o leitor e fazê-lo achar razoável questionar evidências científicas, assumindo crenças pseudocientíficas como sendo a melhor alternativa diante da dúvida.

O leitor esponja pode conviver com assuntos diversos de textos diferentes e criar novas realidades. Quando ouço a propaganda de uma rádio dizendo que “nos meios intelectuais italianos, descobriu-se que a concepção da realidade é muito mais auditiva”, eu entendo que essa afirmação é demasiadamente vaga para ser considerada real. Ela não passa de uma propaganda. O leitor esponja entende que realmente “sábios” da Itália se reuniram e chegaram nessa conclusão, e passa a expressar claramente essa afirmaçaõ como algo com tanto peso quanto qualquer alegação cientificamente válida. Ou que “intelectuais suíços” definiram que existem 11 tipos diferentes de realidade no universo.

Ler muito não é ler bem. Ler muito não significa muita coisa se você não assume o protagonismo como leitor. O leitor precisa aprender com seu texto, e não absorvê-lo indiscriminadamente. Há livros que abordam temas ainda pouco explorados, com muitas explicações alternativas. Tudo bem, isso não é problema. O problema é quando o autor começa a dar mais ênfase a uma das explicações que é a menos provável, tentando direcionar o leitor a acreditar que ela seria a mais plausível, quando na verdade ela não é. O leitor crítico pode encontrar a armadilha e evita-la. O leitor esponja não é capaz de fazer isso.

Se tratando de livros que procuram simplificar e explicar conceitos de ciência, ser um leitor crítico faz uma grande diferença. Você não lê simplesmente por ler, mas sim para aprender, a entender melhor alguma coisa. Leia bem, porque senão a vítima vai ser você


sexta-feira, 4 de junho de 2021

O Novo Iluminismo – em defesa da razão, da ciência e do humanismo


O livro mais recente de Steven Pinker não traz muito de novo. E francamente, achei bem fraco, em comparação com suas outras obras. É a primeira vez que eu fiquei com essa sensação depois de ler seu texto obsessivamente longo e repleto de dados. E pretendo explicar pra você o que eu estou querendo dizer com isso.

A proposta de Pinker é simples: mostrar como os ideais iluministas de razão e ciência foram (e são) fundamentais para que a sociedade encontre caminhos socialmente e ambientalmente sustentáveis, que beneficie a maior quantidade possível de pessoas, independente de qual esfera social se encontrem, ou até mesmo reduzindo as diferenças existentes entre as esferas sociais. As quase setecentas páginas da obra têm esse único objetivo. Depois de explicar inicialmente sobre o novo iluminismo que ele alude, o grosso da obra é um apanhado de dados que mostram como a humanidade progrediu. E somente no final do volume, em menos de cem páginas, ele oferece alguma coisa de ciência, razão e humanismo. E esse desequilíbrio assombroso foi o que terminou deixando um gosto de desapontamento.

Para entender melhor essa sensação, precisamos voltar ao seu livro anterior, o gigantesco Anjos Bons de Nossa Natureza (resenha AQUI). Eu fiquei fascinado como ele conseguiu unificar tantos dados, tão diversos, para explicar como a violência diminuiu ao longo da história da humanidade, e como a sociedade como um todo foi beneficiada com isso. É uma obra com centenas de dados, e apesar de ter recebido uma quantidade considerável de críticas pelo seu “otimismo”, eu não posso deixar de recomendá-la aqui. E se você ainda não se convenceu, leia minha resenha. Espero que lhe dê o ânimo para encarar suas mais de oitocentas páginas.

Pois bem, o Novo Iluminismo soa como se fosse um capítulo de Anjos Bons. A clara sensação de quem conhece os dois volumes é que Pinker, no meio de sua pesquisa, percebeu que tinha material para mais de um livro, enquanto escrevia. Notando que seu texto estava excessivamente extenso, decidiu pegar parte dele e separar, para uma nova obra, a ser burilada depois. Quando ele se dedica ao progresso (quase TODA a obra), é impossível não se lembrar de Anjos Bons. Soa forçado. E bem forçado.

Ele usa o mesmo método de gráficos para explicar como o progresso melhorou, exibindo diferentes índices para comprovar o que está dizendo. E não é apenas isso. Os dois são tão parecidos que ele mesmo não pode negar de fazer menções à Anjos Bons, justamente porque muitos assuntos se sobrepõe em ambos os textos. Nada contra isso, mas me pareceu muito um aproveitamento de material escrito do que essencialmente uma obra sobre iluminismo. E para um livro que pretende fazer uma defesa à ciência, tem bem pouca coisa sobre o papel da ciência na melhoria da humanidade. E eu esperava ver muito mais nessa obra. Fiquei desapontado nesse quesito.  

Pelo menos o mínimo ele entrega. O progresso como sendo melhorias em questões de pacifismo, meio ambiente, direitos humanos, conhecimento, ao longo da história. Torna-se uma boa fonte de informações, em especial porque está tudo na forma de dados. Mas não passa disso. O leitor ao final não vai sentir que leu um livro sobre iluminismo, mas sim que viu um capítulo perdido de Anjos Bons. E não é isso que você espera ao comprar uma obra.

Publicado pela Companhia das Letras, páginas foscas e fontes confortáveis ordenadas com bom espaçamento, tornam a leitura confortável. O peso do livro é que não é pra qualquer momento. E precisa de uma boa dose de paciência, especialmente se você leu seu livro anterior. É um pouco triste ver um escritor tão prolífico se tornar tão desnecessariamente pequeno assim com um livro massivo e repleto de informações, mas que não é original o suficiente para garantir seu espaço próprio. Espero que o futuro ensine boas lições e Pinker nos presenteie novamente com alguma coisa mais digna de leitura.


 

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sexta-feira, 28 de maio de 2021

Cérebro, uma biografia

 


Eu tenho um fascínio considerável pelo cérebro. Não sei se é pelo seu peculiar formato de chiclete mastigado (e reconheço a alusão ao formato do alienígena Krang, o vilão interdimensional do desenho animado das Tartarugas Ninja) ou por ser o órgão responsável pelo que somos. Enfim, me atrai profundamente. Possuo uma quantidade considerável de livros sobre ele (alguns ainda não resenhados aqui), e toda vez que alguém me fala algo a respeito, presto boa atenção.

E esse livro me chegou às mãos numa dessas ocasiões. Recebi uma mensagem de meu amigo e colega de trabalho Ulysses de Albuquerque sobre essa obra, recomendando sua leitura. Não precisei de muito tempo para buscar o livro na internet e me convencer de que valeria o investimento. Algumas semanas depois, o volume chega e já me deparo com uma surpresa: ele é incrivelmente fino! Eu sempre esperava que qualquer obra sobre o cérebro (em especial, quando se trata de sua “biografia”), mereceria pelo menos umas quinhentas páginas. E o texto de David Eagleman não chega às 250. Bem, agora vamos ver o que o livro tem a nos contar.

Primeiramente, você não vai encontrar nada sobre as pesquisas pioneiras do sistema nervoso central, ou uma histórica concisa sobre o estudo do cérebro e dos neurônios. Esqueça. O estilo do autor é ir direto ao que interessa. E reconheço francamente que ele soube muito bem fazer isso. A primeira sensação que você tem ao ler o livro é como se estivesse lendo o roteiro descritivo de um documentário de televisão. A biografia a qual o autor alude não é uma história completa, e sim as partes mais intrigantes, escolhidas à dedo, por quem realmente entende do assunto e por quem sabe o que o leitor gostaria de ler a respeito. E fiquei profundamente agradecido por isso. Ao contrário de ser uma biografia como se imagina, digamos que o livro prefere escolher aquelas partes que realmente vão lhe prender a atenção. E isso confere ao texto uma fluidez difícil de encontrar em outros livros.

Neste livro você vai encontrar uma história do cérebro que erra, do cérebro que toma decisões, do cérebro que nos dá sensação de consciência. Nada de descrições anatômicas entediantes, ou coisa parecida. É o preto no branco, do que conhecemos sobre o cérebro, e escrito para todo mundo entender. E isso precisa ser destacado: Eagleman escreve com uma precisão impressionante de quem sabe o que quer dizer (e como dizer) para seus leitores. Ele usa frases curtas, vocabulário simples, construções e expressões perfeitas, sem exageros ou resumidas demais. A minha impressão é que, ou ele ficou trabalhando arduamente sobre o texto, escrevendo e reescrevendo até encontrar as expressões adequadas, frase por frase, página por página, com um perfeccionismo quase obsessivo, ou ele é um dos autores de ciência para o público mais talentosos que eu já vi. E novamente, lembra muito um documentário. Quase consigo ouvir aquela voz narrando a história toda escrita por ele. E o formato também ajuda: Entre uma e outra afirmação, Eagleman puxa para uma história de alguém ou um paciente com determinada deficiência ou característica que permitiu se descobrir particularidades do funcionamento do cérebro. O livro inteiro é assim, e por isso é atraente.

A biografia que não é uma biografia. São as partes que a maioria de nós gostaria de saber sobre o cérebro que o autor escolheu narrar. Sensações, impressões, falhas, tudo que o cérebro faz conosco e nos torna o que somos, descrito com precisão. Se muito, temos alguns elementos que criam um vínculo de pessoalidade com o leitor, quando ele trata de suas próprias experiências e experimentos. Talvez a mensagem mais marcante da obra, ao final, seja seu aspecto um tanto reducionista: sensações, ideias, intuições, impressões, todas produto do cérebro. Pode ser desafiador para um leitor menos materialista ver as coisas sob esse ponto de vista, mas a escrita é essencialmente honesta a esse respeito, e eu a entendo perfeitamente, sob o ponto de vista biológico. Sem polêmicas, sem reflexões mais profundas, o livro entrega explicações sem entrar em méritos. Simples assim.

Publicada pela editora Rocco, ela contém algumas ilustrações, folhas foscas e fontes confortáveis para leitura. O espaçamento generoso e as margens dão uma impressão ainda maior que o livro é curto. Quadros dão esclarecimentos adicionais sobre os assuntos abordados no texto, mas não provocam desconforto nem afetam a dinâmica da leitura. Adequado para leitura casual, embora eu não recomende. Essa leitura merece uma experiência mais atenta e reservada para aproveitar o máximo o que seu autor tem a nos contar

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Receita federal sugere taxar livros porque "pobres não leem"


 

Como é um blog de livros, não posso deixar de comentar sobre essa... esse... como dizer... ah, não sei dizer. Não sei as palavras. Afinal, pobre não lê livro.

Essa notícia digna de um autêntico chapeleiro louco foi veiculada em um bocado de noticiários e sites, um dos quais eu coloco a referência no finzinho do texto. As reações foram tão imediatas e diretas, que pensei um pouco se deveria escrever algo sobre isso. Pensei muito, aliás. Se não estaria chovendo no molhado, já que muita gente falou praticamente tudo que se poderia falar depois de uma declaração bizarra dessas. Mas depois, lembrei do objetivo desse blog, e justifiquei esse texto, justamente no começo dessa postagem.

Livros não didáticos são caros. Muito caros. E falo dos livros bons. Não dos best-sellers que tem milhares de tiragens e são aqueles que dão um bom retorno às editoras. Esses justamente que tem resenhas super elogiosas e terceirizadas, e que na maioria das vezes vendem uma história muito inferior ao próprio conteúdo. Mas vou deixar pra comentar isso em outra oportunidade. Minha briga agora é com a taxação de leituras.

Mesmo sem taxas, um brasileiro médio não tem interesse por ler. E isso reduz a vendagem, que por sua vez reduz mais ainda a atenção de editoras para livros que são realmente bons. Só que os livros não didáticos, informativos, são o passo seguinte para instigar o gosto por leitura, ou pelo menos o interesse por ler. E o gosto da leitura, regra geral, está atrelada ao interesse por estudo. E educação, como já dizia Paul Morland na resenha anterior (clique AQUI), é a mola para a qualidade de vida. Quanto maior o estudo, maior a renda de quem estudou. Ponto.

A lógica errada da Receita é que, se pobres não leem, está tudo bem então. Já que quem lê é rico, vamos cobrar deles para continuarem lendo. Eu fiquei ainda mais indignado com a escrita do texto, destacada no jornal:

"De acordo com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2019 (POF), famílias com renda de até 2 salários mínimos não consomem livros não-didáticos e a maior parte desses livros é consumida pelas famílias com renda superior a 10 salários mínimos. Neste sentido, dada a escassez dos recursos públicos, a tributação dos livros permitirá que o dinheiro arrecadado possa ser objetivo de políticas focalizadas"

Mas o que diabos são políticas focalizadas? Na verdade, é uma expressão que serva para qualquer coisa e não diz nada, ao mesmo tempo.

É engraçado que esse raciocínio torpe faz você acreditar que o motivo pelo qual pessoas com baixo poder aquisitivo não leem é porque eles simplesmente não se importam com leitura, e isso é tratado como a coisa mais natural do mundo.

Existem basicamente dois motivos pelos quais a maioria das famílias não se interessam por leitura. A primeira é que elas não foram ensinados a se interessar pelo hábito de ler. E isso não é culpa delas. Famílias que sobrevivem com dois salários mínimos ao mês não podem se dar ao luxo de fazer nada que não esteja diretamente ligada a própria sobrevivência. Vindas de um ensino fundamental e médio precários, defasados, sucateados, com professores miseravelmente remunerados, com jornadas de trabalho extenuantes, como se pode pensar que elas vão se interessar por leitura quando elas precisam priorizar o pão de cada dia? E a segunda é simplesmente porque LIVRO É CARO! Deveria ser ÓBVIO que famílias com renda de dois salários não se sentem confortáveis em pegar cada centavo suado que ganham para investir em livros não didáticos (e os próprios livros didáticos já são absurdamente caros), quando elas precisam justamente deste dinheiro para COMER!

E o pior de tudo é que, pra pensar assim, o pessoal da Receita também não deve ter o costume de ler. Aumentar preço de livro não vai fazer com que magicamente todo mundo continue comprando a mesma quantidade de obras, só que mais caro, engordando os cofres públicos. É muito mais provável que o consumo de livros DIMINUA entre as pessoas que ganham mais de 10 salários mínimos. Não estamos falando de gasolina, que, querendo ou não, muita gente é obrigada a consumir para continuar trabalhando. Livros não didáticos são comprados por gosto. Se o gosto se torna caro, é mais provável que seu hábito mude, ou que o leitor fique bem mais seletivo na hora de comprar, reduzindo o consumo, e por consequência, a arrecadação para o governo. Todo mundo sai perdendo.

Sucatear educação e ciência no Brasil parece não ser suficiente. Tem de garantir que qualquer tipo de interesse por livros seja eliminada também. Eu tenho quase certeza que no congresso essa tosquice deve ser barrada. Quase certeza. E, se não for, diga adeus a este blog.

Ah, ia me esquecendo. O link da reportagem:

https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/economia/2021/04/receita-defende-taxacao-de-livros-sob-argumento-de-que-pobres-nao-leem.html

quarta-feira, 7 de abril de 2021

A Maré Humana - a fantástica história das mudanças demográficas e migrações que fizeram e desfizeram nações, continentes e impérios

 


Mais um livro cujo subtítulo termina por fazer você decidir entre comprar e não comprar a obra. Demorou um pouco para eu entender a razão da escolha do título propriamente dito. E foi brilhante. Comparar a população humana (ou qualquer outra que seja) a uma maré é de uma sensibilidade quase poética. A maré aumenta e diminui ao sabor de influências externas, como a lua, e afeta tudo ao seu redor, ajustando-se às irregularidades da costa a qual banha. E populações se comportam justamente desta maneira. Agora, o que temos a saber de populações humanas?

O livro começa destacando constatações importantes para o entendimento da obra, como um todo. Muito do que temos de dados sobre as populações humanas são muito, muito recentes. O conceito de censo ou levantamentos populacionais nos países não tem mais do que uns duzentos anos, e o autor nos adverte justamente para nos avisar de que descrever essas movimentações humanas ocorridas há séculos atrás é um esforço muito mais especulativo (mesmo que baseado em certas evidências) e menos preciso do que no mundo moderno. E neste sentido, ele evita entrar nos detalhes. Portanto, não espere um mapa continental sobre as movimentações humanas a cada século, desde o surgimento da nossa espécie.

Não obstante, o trunfo do autor é sua capacidade de identificar os principais fatores que foram responsáveis pelos crescimentos, decaimentos e movimentações de massas na história. Impérios que aumentaram sua população com escravização de outros povos, o esfacelamento de territórios e países através de invasões bárbaras, ou mesmo a natureza característica dos próprios povos, em se reproduzir mais do que outros. E mesmo constatações recentes não passam despercebidas, como o poderoso efeito da educação. Paul Morland é taxativo quando afirma que o acesso à educação é um importante freio no crescimento populacional, ao mesmo tempo que é um elemento fundamental no aumento da qualidade de vida individual. Um fenômeno tão recente quanto transformador.

O autor desliza bem nos assuntos, e nos premia com explicações razoáveis sobre situações históricas da aventura humana no mundo. Por exemplo, como a razão do sucesso das colonizações do Império Britânico tenha sido devido, entre outras coisas, ao seu envio continuado de cidadãos para as colônias recém conquistadas, substituindo em muito as populações nativas. Isso só foi possível porque a própria população britânica foi capaz de sustentar essas emigrações, devido à sua alta taxa de natalidade. E como esse efeito não funcionou com outros países procurando colonizar os territórios africanos. Como o poderio de um país, durante muito tempo, se deveu à capacidade reprodutiva da população, gerando massa de pessoas para sustentar um exército e combater nos fronts de batalha. Ou como líderes políticos abusaram de estratégias erradas para estabilizar uma nação, resultando na morte infundada de milhões de pessoas, como os exemplos grotescos da China sob o domínio de Mao e da União Soviética, sob a mão de ferro de um Stalin paranóico.

Enquanto que o primeiro terço da obra se concentra em aspectos gerais da população, o restante do livro é muito mais concentrado no mundo recente. Destaque é dado para as grandes navegações da Europa, que redesenhou o perfil das populações no planeta, bem como o tráfico de escravos que veio logo em seguida. Depois, o livro se divide de acordo com os continentes, aproveitando a existência de farta quantidade de dados disponíveis e compiladas, em grande parte, por órgãos internacionais, como a ONU e a UNESCO.  A sensação é estranha. Como se estivéssemos assistindo uma partida de futebol acompanhada por um narrador relapso e relaxado, que muda nos últimos quinze minutos da partida, por um narrador ágil e versátil. Não tenho como culpá-lo, uma vez que os dados recentes são fartos, em comparação com o que existe antes disso.

Apesar da narrativa fluir bem em boa parte do livro, o leitor desavisado pode se perder em algumas armadilhas. O autor, ao tratar de flutuações populacionais, migrações e outras movimentações parecidas, é obrigado a recorrer à expressões quantitativas. E isso não funciona bem quando formas diferentes de quantificar são colocadas juntas. Por exemplo, há muitas sentenças expressas da seguinte maneira: "1/3 da população de meio milhão de pessoas passou a ter 1,3 filhos por casal, por ano, no último quarto de século". Juntar frações, números inteiros e médias em uma mesma sentença geralmente torna o texto muito confuso para quem não é familiarizado em reconhecer quantidades. E posso garantir que a maioria das pessoas que vão se interessar por este livro não é assim. E infelizmente, essas expressões reinam em mais da metade do livro. Mais do que eu gostaria. Confesso que muitas vezes, perdia o estímulo em continuar lendo, de tanto que precisava enfrentar essas construções.

A obra de Morland foi publicada pela Zahar, e apresenta folhas foscas, amareladas e boas para ler. O volume é confortável para levar numa mochila ou numa bolsa, mas devido ao fato dele ter variações na fluidez do texto, é muito fácil se distrair da narrativa caso você decida fazer a leitura em um ambiente como um parque ou uma cafeteria. Não obstante, é suficientemente informativo e vai lhe ajudar a entender um pouco melhor sobre as subidas e descidas da maré humana. Mesmo que muita coisa não seja retida, a parte principal da história não vai ser esquecida.


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Sim, estamos lendo muito mais. E não, isso não é nada bom

 


Há algum tempo atrás, eu postei aqui no blog sobre o preço dos livros de ciência, e como isso poderia impactar a principal função social da divulgação científica, que é atingir a todas as esferas da sociedade. Mas o principal entrave é justamente o custo da produção de um livro de qualidade (link para o texto AQUI). E neste mesmo texto, comentei muito rapidamente sobre nosso viés de achar que estamos lendo menos, o que não é verdade. Tinha pensado inclusive em discorrer mais sobre o assunto, mas percebi que iria desvirtuar do tema central daquela publicação. Agora, entendo que o assunto merece um artigo por si mesmo.

Eu tinha pensado no tema e depois me esquecido dele quase que completamente. Então comecei a ler o livro O Mundo da Escrita (resenha AQUI), e me deparei com o tema novamente. Entendi, pela primeira vez, qual foi o grande impacto que a disseminação e popularização do alfabetismo teve na sociedade. E pode acreditar, não foi nada modesto. Talvez seja difícil imaginar como deve ter sido viver em um país onde ninguém sabia ler, com exceção do clero e de alguns aristocratas. Sequer consigo imaginar viver em um mundo hoje onde não hajam conjuntos de letras que, juntas, formem uma palavra inteligível. Meio que ao mesmo tempo, a popularização do alfabetismo surge com a popularização dos textos escritos, graças à imprensa de Gutemberg e o baixo custo do papel. Desde então, o número de pessoas que sejam capazes de ler aumentou notavelmente ao longo dos séculos. E agora vivemos em um mundo onde o analfabetismo é a exceção, e não a regra.

A internet só intensificou a coisa. Textos na forma de blogs, artigos, resenhas, comentários, artes e autores anônimos surgiram aos milhares em todas as partes do mundo, ao mesmo tempo, e praticamente acessíveis a todos que tenham um computador ou um celular. As redes sociais não escaparam, e é um intenso trânsito de informações escritas enviadas para todos os lados. Até mesmo o Twitter apostou na limitação do número de caracteres acreditando que informações reduzidas seriam bem mais populares. Mas a criatividade dos usuários ultrapassa as imposições que limitam o número de palavras. Se é pra passar mensagem, que seja na quantidade que achar necessário: e segue o fio!

Você lê constantemente, o tempo todo. Tudo escrito. Ora e meia um áudio aqui e ali, mas nada substitui verdadeiramente a expressão textual, discreta, informativa. Até imagens precisaram ser carregadas de um texto com significado. Os memes são a prova viva disso. Não tem hoje como viver sem textos. E por isso, eu afirmo categoricamente que estamos lendo mais, muito mais.

Agora vem o outro lado da moeda...

Nossas leituras se tornaram superficiais e pouco úteis. Nossas motivações para ler com mais profundidade de forma a entender melhor alguma coisa estão perdendo terreno para uma súbita tendência que temos em não prestar atenção em algo que não seja continuamente atraente. E isso não tem nada de positivo. Como havia dito antes, no meu outro texto, quando falamos que nossa sociedade está lendo menos nos referimos explicitamente a livros. Ainda fazemos avaliações de frequência de leitura baseado em um ponto de vista de que sua fonte é o livro (quantos livros você leu neste ano?) e isso subestima nosso cotidiano diário na qual há sempre alguma coisa que precisa ser lida, em algum lugar.

Estamos perdendo o hábito salutar de dedicar algumas horas para ler um livro. Uma leitura compassada e pensada, refletida, tem o poder de mudar pessoas. Estimular o raciocínio, alimentar nosso cérebro de informações úteis, ponderadas, nos tornar mais críticos, e mais equilibrados. Ou pode nos fazer relaxar, navegando por todos os gêneros, dos romances aos mistérios policiais ou o terror. Mas não é isso que está acontecendo.

Senti esse problema durante a pandemia. Em um determinado momento, não consegui reforçar meu estímulo para minhas leituras habituais. Fui aos poucos escanteando meus livros e, como consequência, intensificando minha atenção para notícias gerais, fofocas, temas políticos, e tudo o que ainda tem nos conturbado. Percebi então que estava me tornando cada vez menos racional e bem mais passional quando parava em alguma informação que alimentava minhas convicções. E lendo-as, me tornava ainda menos crítico, e mais intempestivo. Cheguei a desenvolver ansiedade por causa dessas notícias. Felizmente, consegui perceber isso. E tenho retornado gradativamente a uma leitura mais saudável e bem mais acolhedora.

Nós estamos lendo mais, mas não estamos lendo bem.


sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

O Mundo da Escrita - como a literatura transformou a civilização

 

Quando me deparei com este título, achei impossível não comprar o livro. E seu subtítulo foi magicamente inspirador, visto que é um terreno bem pouco explorado, e que merecia uma obra à altura para contar a trajetória da mais peculiar e revolucionária característica humana. E como vocês podem ver, eu não hesitei um só momento.

Antes de começar a folhear a obra, pensei comigo mesmo como se poderia escrever uma história da escrita. Me lembrei de minhas aulas na escola, a respeito da escrita cuneiforme e dos primeiros textos publicados. Imaginava que voltaria a pincelar esse assunto na forma de uma leitura meio nostálgica nesta obra, o que também me deixou receoso de estar encarando somente mais um livro de história. Nunca fiquei tão feliz por estar errado.

A maneira pela qual Martin Puchner decidiu conduzir seu texto foi bem peculiar, e eu sou grato por isso. Para mostrar os efeitos da escrita e seu impacto sobre pessoas e civilizações, ele optou por mostrar como a escrita influenciou os homens que influenciaram a história. E ele começa a jornada com o todo poderoso Alexandre, o Grande. Este homem notável que desenhou a história ocidental tinha sido profundamente influenciado pelo texto da Ilíada, e utilizava a história homérica como uma grande inspiração e um repositório de valores. É quase magnético percorrer os trechos do livro que destacam essa história fascinante. E isso é só um exemplo, apenas.

Posso destacar que a primeira metade do livro é fascinante. A importância do texto escrito é destacada para quase todas as civilizações, ora como motor de reformas religiosas, como a Bíblia Sagrada, ora como repositório sagrado de leis. A forma como o papiro era considerado tão valioso quanto seu conteúdo dava uma magia ainda maior para textos sagrados. E ele não para no Ocidente. A maneira pela qual ele aborda as diferenças de valores dadas para ensinamentos passados oralmente daqueles que seriam "maculados" pela escrita é muito agradável de ler.

Um destaque muito relevante da obra é dada para a revolução provocada pela imprensa. A invenção de Gutemberg transformou o mundo de uma maneira que ainda pouco compreendemos. A popularização do texto escrito com produção massificada de textos e redução de custos levou ao fim um dos maiores privilégios só compartilhados pela realeza e autoridades religiosas: a alfabetização. Confesso que fiquei boquiaberto por nunca antes ter pensado como a privação coletiva do direito à leitura foi tão perversamente explorada pelos poderosos, durante centenas de anos.

Agora, chegamos a parte onde o livro perde seu fôlego. Depois de perambular pela escrita maia, as aventuras de Dom Quixote e da importância do Manifesto Comunista, caímos em uma jornada pessoal do autor. O caráter do livro se desvia um pouco de sua abordagem histórica e se transforma simplesmente em um relato de uma jornada pessoal de Puchner, no esforço de identificar as paisagens e o autor de uma certa obra. Confesso que essa mudança abrupta me frustrou um pouco. Talvez porque eu não seja um profundo conhecedor de literatura, mas considerando-se que é uma obra que a princípio deveria ser entendida pela maioria das pessoas, nessa parte ele deixou a desejar. Mesmo quando ele parece retomar sua escrita empolgante com sua experiência encarando o fenômeno Harry Potter, não se tem muito mais pique. O livro termina bem menos empolgante do que seu começo promissor.

Publicado pela Companhia das Letras, o volume de pouco mais de 400 páginas flui muito bem na sua maior parte, mas exige esforço na sua segunda metade. Mas não posso deixar de reconhecer que o livro cumpriu seu papel ao dar novas perspectivas sobre o fabuloso fenômeno da escrita. Folhas amareladas e foscas são confortáveis para ler em qualquer ambiente. O livro tem um tamanho bom para levar em bolsa ou até mesmo nas mãos, e é convidativo para uma tarde tomando café numa varanda.