domingo, 29 de setembro de 2019

Pura Picaretagem - como livros de esoterismo e autoajuda distorcem a Ciência para te enganar. Saiba como não cair em armadilhas!


Diante de como a informação tem sido passada atualmente a todo instante com uma velocidade incrível via redes sociais, sem nenhum tipo de critério, uma leitura assim torna-se praticamente obrigatória. Se imunizar contra informações erradas e saber identificar as pistas que nos levam a descobrir que notícias foram exageradas, deturpadas e até inventadas, termina se tornando a única alternativa para não ser deixar enganar. Precisamos começar a separar o joio do trigo, e com certa urgência. A melhor maneira de fazer isso é exercer o raciocínio crítico, e uma leitura dessas tende a se tornar um bom começo.

Primeiro, preciso lhe avisar que o termo Ciência que se destaca no anormalmente longo subtítulo da obra na verdade não é essencialmente sobre as ciências, mas sim sobre física. A obra se concentra em tentar explicar e desmistificar conceitos de física que são usualmente deformados, como as palavras quântico e incerteza. A proposta da dupla de autores, o físico Daniel Bezerra e o jornalista de assuntos científicos Carlos Orsi, é justamente trazer ao leitor o real significado destes termos e de outros, que são usados à exaustão por charlatões e picaretas de marca maior.

A obra lhe introduz a uma definição de ciência no marco da Revolução Científica, com Galileu e em seguida com Newton. É concisa e não exige muito do leitor. Ela flui calma e suave, nas sua curtas páginas. Em seguida, o livro começa a pegar seu ritmo e então nós imergimos em uma narrativa histórica bastante descritiva sobre a história das descobertas precursoras do conceito físico de quanta, para enfim entrar no tema. A intenção dos autores é explicar o que realmente o termo quântico quer dizer, partindo dos descobridores, descobertas e suas consequências.

O texto continua, intercalando explicações com gráficos e esquemas para tornar a narrativa mais digerível. O leitor vai passar pela história do átomo, pelo princípio da incerteza e vai até conhecer alguns esquemas que os autores utilizam para tornar alguns experimentos mais inteligíveis. Você vai se deparar com algumas equações, mas não se desanime por causa disso. Além de serem bem simples, seu entendimento completo não compromete a obra. Ao final do volume, os autores selecionam algumas afirmações dúbias mais frequentes e tecem comentários sobre sua plausibilidade.

A parceria de Daniel Bezerra e Carlos Orsi é uma boa iniciativa, e resulta num livro de fácil leitura. Hoje, Carlos Orsi é o redator-chefe da Revista Questão de Ciência, do Instituto que leva o mesmo nome, cujo objetivo é esclarecer sobre metodologia científica e combater pseudociência. Eu particularmente acho que o título poderia deixar claro que trata-se de uma obra pensada para informar sobre conceitos específicos da Física, e não de ciência em geral, que são comumente mal utilizados como jargão que legitima qualquer coisa. Eu esperava encontrar algo um pouco mais amplo, envolvendo outras ciências. Mas não deixa de ser um bom exercício sua leitura.

Editado pela LeYa, o livro é pequeno, com folhas foscas e amareladas. Tipografia confortável, com número de páginas na lateral, ao invés do canto inferior direito de cada folha. Possui uma bibliografia concisa, incluindo alguns sites.  

domingo, 22 de setembro de 2019

Por que mentimos - os fundamentos biológicos e psicológicos da mentira


Meus amigos, que livro!

Foi a primeira vez que encontrei uma obra capaz de discorrer sobre a natureza generalizada do impulso de mentir, saindo de um âmbito puramente ético, social e moralista, para entrar pelo terreno da biologia e psicologia. Até então, imaginava que alguém já teria escrito um volume sobre esse tema, e era questão de tempo para achar. E finalmente terminei achando.

Esta é uma obra que merecia com certeza um maior destaque. Foi difícil conseguir o livro, e somente o encontrei através da sebo Estante Virtual. Por ser um assunto amplo, complexo e que mereceria uma profunda revisão por diversas vertentes, imaginei que receberia um volume amplo, com algumas centenas de páginas. Para minha surpresa, o pacote no qual o livro estava embrulhado era modesto em grossura, e seu conteúdo ainda mais fino. O livro mal preenche duzentas páginas.

Para meu deleita, a primeira parte da obra se dedica à mentira generalizada que se encontra na natureza, expressada por diversas espécies animais. É uma narrativa magnífica, de encher os olhos. Primeiro ele define o conceito de mentira e a coloca como uma das estratégias mais bem elaboradas do reino animal. Por exemplo, a camuflagem, quando um animal fica quase invisível em um pano de fundo de tonalidade e formas  semelhantes, é considerada uma estratégia baseada em mentira. Sendo um predador, sua mensagem é clara: eu estou aqui, mas estou mentindo, fazendo você crer que não estou. Outros exemplos parecidos ilustram ainda mais a noção de que a mentira é amplamente utilizada por dezenas de espécies animais.

Neste caminho, o autor vai discorrer sobre as vantagens das mentiras eficientes e sua vantagem evolutiva, caminhando inclusive sobre aspectos genéticos e a mentira sob a ótica de animais sociais e do altruismo. Saindo um pouco do terreno puramente biológico, chega a vez do psicológico tomar a narrativa. Então vemos uma verdadeira e profunda análise humana, de nosso impulso instintivo em transmitir informação, acrescida de nossa falha de perder a precisão no meio do caminho. David Livingstone Smith é um professor de psicologia na Inglaterra, e o assunto rende bastante neste terreno onde ele está confortável. Encaramos as questões sociais da mentira, como um mal necessário em algumas circunstâncias, sobre blefes, a mentira como arma e a mentira como defesa. E chegamos até o conceito de auto-engano, quando somos tão bons em mentir que até mesmo acreditamos em nossas próprias mentiras.  É verdadeiramente primoroso. A obra termina com uma boa dose de referências científicas que dão suporte a cada um dos capítulos.

Escrita num estilo simples e convidativo, a narrativa flui agradável e prende sua atenção. O autor sabe deixar ganchos que instiguem o leitor a continuar. O texto é tão informativo quanto reflexivo, e isso é um brinde aos leitores que gostam tanto de ver dados como opiniões. Isso confere um equilíbrio que torna a leitura ainda mais natural.

Publicado por uma parceria da Elsevier e da Editora Campus, é uma obra que você não esquece. Cheguei a recorrer a ela mais de uma vez, para meus próprios estudos. Um livro que deveria ter sido bem mais divulgado e destacado, mas que infelizmente ficou pouco conhecido e passou batido pelo grande público

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Cartas a um Jovem Cientista



Escrever para o público em geral parece ter caído nas graças de Edward Wilson. Somado a isso o fato de estar ciente de que a carreira científica mostra-se um desafio que não cabe nos ombros de muitos (falando inclusive como aluno e mestre) ele parece ter tomado a si a responsabilidade de esclarecer um pouco o universo do cientista. Especialmente para aqueles que desejam ingressar neste terreno.

Wilson viveu uma vida produtiva e recheada de oportunidades. Demonstrou desde cedo o gosto pela ciência, e construiu uma carreira sólida e respeitável. Depois de trilhar os caminhos de estudante, pesquisador e orientador, enfim decidiu compartilhar um pouco de sua vasta experiência conosco.

Nesta obra, Wilson faz uma retrospectiva crítica de sua própria jornada, para que ela sirva como um grande conselho aos futuros cientistas. Desde as curiosidades de sua infância e seu apetite inato para as maravilhas do mundo biológico, até seu posicionamento como o grande professor e pesquisador que se transformou. Note bem que a obra, apesar de apresentar traços biográficos, não se encaixaria muito bem em ser classificada como tal. Wilson tem consciência disso quando delineia suas ideias e lança sugestões voltadas especialmente para a juventude, naquele momento meio estranho, meio incerto, onde nossa mente vaga apenas nas dúvidas, nas incertezas do que fazer no futuro. Se você está na fase do "o que vou ser quando crescer", e tem uma quedinha, uma dúvida sobre ser ou não cientistas, então este livro é seu.

E os conselhos não são supérfluos, nem exagerados. A leitura da obra pode lhe dar uma bela amostra de quais devem ser suas características, caso você queira se tornar um cientista no mundo de hoje, e adicionada de sugestões práticas interessantes. Por exemplo, alunos que queiram ingressar na academia devem se vincular a professores e pesquisadores que possam lhe oferecer um excelente e produtivo laboratório de pesquisa. Estimula que o jovem cientista dedique algum tempo no meio de suas atividades para realizar pequenos experimentos informais, em especial para aguçar seu instinto em problemas específicos ou na arte de encarar perguntas e raciocinar sobre possíveis experimentos. Estas pequenas sugestões, para o leitor mais atento, vão fazer uma grande diferença no aproveitamento desta obra. Esse é especialmente um texto para ser lido e compreendido nas suas entrelinhas, porque são nos detalhes que conseguimos absorver o melhor da obra.

Misturadas às suas experiências e conselhos, o livro não deixa o leitor desapontado no que se refere a conteúdo científico. Como sempre Wilson passeia por fatos e histórias que enriquecem o leitor, no brilhantismo que é sua escrita leve e agradável. Não raro você é presenteado com detalhes e descrições de fenômenos biológicos e naturais que só as mãos de um mestre perspicaz são capazes de apontar. Prepare-se para adentrar pesadamente no universo das formigas, a especialidade do autor. Desde suas impressionantes castas até o papel dos odores na comunicação, não serão poucos os exemplos escolhidos para ilustrar muitas de suas aventuras e seus conselhos.

Por fim, a obra encerra com uma pincelada sobre ética na ciência, que ocupam curtas duas páginas. Mas temos aí um Wilson direto e afetuoso. Talvez as duas páginas mais contundentes de toda a obra.

Publicado pela Cia das Letras, traz uma das capas mais originais que eu podia imaginar para um livro com este título. Livro fino e ilustrado, com tipografia confortável impressa em papel amarelado. Este volume é um verdadeiro presente para os leitores que admiram a escrita ligeira e rica de um dos maiores entomologistas de nossa época. E se você é um jovem cientista sequioso de alguns bons conselhos de um pesquisador experiente, achou o volume certo.

domingo, 15 de setembro de 2019

O que é a Evolução?


Este é um assunto que desperta o interesse de muitos leitores. Talvez seja o conceito científico mais popularizado e mais horrivelmente desfigurado de toda a história. É um dos temas de biologia menos compreendidos e mais polêmicos que podemos imaginar. O termo é usado de forma genérica, em filosofia, metafísica, religião. Não obstante, sua compreensão correta é o alicerce sobre o qual se estabeleceram as mais eficientes estratégias de produção de comida e combate a epidemias já aplicadas pelo homem. E mesmo assim, ainda hoje é um tema indigesto. O pior de tudo: muita gente pensa que sabe sobre o assunto, tendo apenas uma rasa leitura sobre textos muito genéricos e pouco precisos. Não se pode culpar ninguém por isso. A vida não é simples e nem fácil. Seus mecanismos também não. Levou décadas para que os cientistas começassem a entender os processos da evolução, e ainda hoje há muito a ser feito. Mas nada impediu Ernst Mayr de dar sua contribuição ao assunto. Unindo sua profunda compreensão do tema e sua habilidade de escrever para o público, nasce sua obra, a última a ser lançada no Brasil.

Publicada originalmente em 2001, Mayr contava com noventa e seis anos nos ombros. Lúcido e ativo, ele ainda iria contribuir com mais uma obra (Biologia, Ciência Única, publicada quando ele tinha 99 anos!) antes de falecer com um século de idade. Decidido a apresentar uma obra condensada, enxuta e ao mesmo tempo informativa sobre a evolução biológica, o autor faz questão de nos apresentar um sumário de tudo o que ele conhecia sobre as forças motrizes do espetacular processo que havia sido detalhado pelo naturalista britânico Charles Darwin. Hoje, a evolução é a base de toda a biologia. Se você quiser saber realmente sobre o que é verdade em relação a este assunto, sem preconceitos ou exageros, sem extrapolações desnecessárias ou excesso de imaginação, bem-vindo à obra certa.

Este é um livro para quem realmente gosta de biologia. Se você acha que precisa de uma visão mais superficial, mais geral, sobre um assunto que, na sua complexidade, vai passear por química, anatomia, probabilidades, então não vá com muita sede ao pote. Eu não pretendo com isso lhe desencorajar com a obra. O livro é sobre evolução, e as evidências que lhe corroboram e lhe dão sustentação estão espalhadas nestas outras áreas. Não há o que fazer. Entretanto, se você topar esse pequeno desafio, lhe garanto que a obra vai lhe dar uma visão real sobre o assunto. Você vai poder dizer finalmente que está começando a entender sobre o processo evolutivo. Ou pelo menos vai começar a identificar quando as pessoas usarem erroneamente esta expressão para passar alguma ideia bizarra.

O livro segue uma pauta muito didática sobre o assunto. Aborda sobre o surgimento e diversidade da vida, uma pitada de filogenia e embriologia, como sustentáculos da teoria da evolução. Depois ele se aprofunda no mecanismo, e dedica boa parte da explicação aos processos que afetam a evolução biológica, com especial atenção à seleção natural. Aqui o autor faz questão de elucidar alguns pontos que geralmente ficam mais obscuros, como a confusão sobre aleatoriedade na seleção e seus efeitos ao longo das transformações das espécies. Um prato cheio para entender melhor como funciona esse impressionante e complexo mecanismo. Aliás, a falta de compreensão adequada sobre a seleção natural é uma das maiores fontes de confusão a respeito da validade da teoria evolutiva. Aqui não tem desculpa: ela é apresentada de forma sucinta e clara, sem margem para outras interpretações.

Em seguida, Mayr adentra propriamente aos mecanismos da evolução. Ele oferece as bases genéticas do processo de diversidade e herança de caracteres. Digno de qualquer aula de biologia. Sua escrita procura tornar o assunto o menos árido possível, recorrendo a muitos exemplos e precisão na hora de escolher as palavras certas para deixar o texto bastante palatável, evitando assim de fazer analogias que podem dar margem à diferentes interpretações. Suas frases aqui são construídas com cuidado. Sua obra pretende esclarecer, e ele faz questão que ela seja assim.

Neste momento, não dá pra evitar jargões mais técnicos. O leitor é apresentado à conceitos pouco comuns no cotidiano, como especiação parapátrica, simpátrica, ou fluxo gênico. Mas se seu objetivo é entender sobre a evolução biológica, precisa aceitar o fato de que conhecer pelo menos alguns destes termos é necessário. E eles são apresentados um a um, devidamente esclarecidos. A obra inclui alguns quadros que se propõe a dar uma explicação particular sobre certos termos ou definições. É aconselhável acompanha-las.

Ao final, Mayr se desbruça sobre um tema de seu agrado: a evolução humana. Se você gosta do assunto, este capítulo é um presente em especial. E não esqueça de ler os apêndices. O autor apresenta as mais recorrentes críticas à evolução e responde a algumas dúvidas igualmente comuns. São trezentas e poucas páginas sobre um dos temas mais interessantes da biologia.

Publicado pela Rocco, o livro é impresso em fonte branca com tipografia simples. A obra é ilustrada com figuras e esquemas que realmente ajudam a entender certos conceitos. Enriquecida com o estilo gracioso de Mayr, o livro cumpre o que promete, e não desaponta ao leitor de popularização científica. 

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

O Golem - o que você deveria saber sobre ciência



Confesso que esse título me deixou intrigado.

Folheei o livro algumas vezes antes de decidir comprar. Depois então entendi o que ele quis dizer. Mas preciso dizer que o subtítulo poderia ter sido melhor pensado, para fornecer uma ideia mais clara dos objetivos dos autores. A alusão ao Golem, o monstro que é descrito como sendo feito de barro, argila ou até pedra, da mitologia judaica, que foi criado por um feiticeiro para proteger os judeus da perseguição, é pelo menos criativa. Harry Collins e Trevor Pinch decidiram escolher esta criatura porque ela é representada como sendo um ser com força monstruosa, mas completamente dependente das ordens dadas pelos processos mágicos que lhe deram vida. O Golem não é dotado de livre arbítrio, e por isso pode portar-se como uma criatura inofensiva e ingênua, ou um monstro destruidor e selvagem, de acordo com as ordens que receba. É justamente nisto que fica a comparação.

A obra é um apanhado de casos controversos de ciência, desde sua origem até suas críticas, das pessoas envolvidas e da reação da imprensa e do público. Vamos encontrar aqui detalhes de interpretação de informações de controversas experiências de transferência química da memória feita com planárias. O épico experimento de Louis Pasteur, que teria provado definitivamente a teoria da biogênese e por fim martelado o último prego sobre o caixão da geração espontânea, numa narrativa que apresenta um ponto de vista mais político e menos experimental do que esperamos que tenha sido. A polêmica gerada por uma falsa história imensamente alardeada, sobre a inacreditável tecnologia que teria permitido aos físicos descobrirem a fusão a frio. E outros casos menos conhecidos, que são explorados pelos autores na obra.

O volume se concentra fundamentalmente no elemento humano que protagoniza todas estas histórias, a peça mais falha da equação científica. Os autores exploram o contexto, as motivações, as influências e pactos que nortearam muitas decisões e motivações dos principais atores em cada um dos episódios. Não encontramos uma análise profunda da ciência por trás, mas sim o que norteou a elaboração e interpretação dos resultados que eles obtiveram. A única coisa que une a todos é a proposta científica experimental dos exemplos escolhidos. A ciência neste contexto é o Golem. É o gigante atrapalhado que foi mal conduzido por homens falíveis em episódios com diferentes graus ou níveis de responsabilidade pelo que estavam fazendo. Encerram a obra com uma defesa do método científico, e uma boa apologia de como a mesma deve ser tratada tanto pelos cientistas como pelo noticiário público, que frequentemente adiciona exageros ou deformações.

Publicada pela Editora Unesp, o volume é confortável, com tipografia mais arredondada impressa sobre papel amarelado fosco. Vale a pena para servir como consulta de exemplos, mas não é daqueles livros que lhe marcam e vem rapidamente à sua mente. A narrativa não chega a ser empolgante, mas por se concentrar no aspecto mais humano das histórias, mantém um ritmo razoável.

domingo, 8 de setembro de 2019

O Guia Contra Mentiras - como pensar criticamente na era da pós-verdade



Quando encontro qualquer literatura que estampa na sua capa a palavra guia, eu instintivamente enxergo com olhos pouco amistosos. A primeira imagem que surge em minha mente é de um livro sobre turismo, ou sobre receitas de doces ou pratos rebuscados. Pequenas regras separadas em tópicos, com uma proposta única de fornecer a você o mínimo para reproduzir algo, ou informações básicas sobre a proposta do guia. Algo como uma fórmula, que no meu enxergar tira o prazer de uma leitura continuada e reflexiva, que é o que eu busco num livro. Olho novamente, e me deparo com o convidativo subtítulo. Nos tempos atuais, o pensar criticamente é altamente desejável. Se a obra se propõe a isso, vamos dar uma chance a ela.

Devo confessar que devorei o livro, e não me arrependo. Daniel J. Levitin é um professor de psicologia e neurociências, que julgou por necessário colocar em texto uma série de recomendações que pudesse nos ajudar a enxergar melhor as informações que diariamente nos passam pelos olhos. É aí que repousa seu conceito de guia. Mas não espere um texto salpicado de pequenos conceitos, ou subdividido em dezenas de recomendações. Ele trabalha convidativamente as partes de sua obra de acordo com os tipos de informação que nos são apresentados. Sua escrita flui muito fácil e ele adiciona uma pitada de humor aqui e ali, intercalando com sua enxurrada de dados e informações. Uma grande vantagem é que o autor sabe dosar a caneta, e se policia para que seu texto não avance para um terreno mais especializado, mais árido. Esta é uma obra que agrada todo mundo.

Dedicando boas páginas ao mundo dos números (e mesmo que ele lhe convide a prestar atenção em alguns cálculos, não perde o ritmo se detendo em detalhes), o autor nos mostra como dados podem ser apresentados visualmente, de maneiras bem diferentes. Especialmente de acordo com que tipo de informação você quer apresentar. Ele pontua aspectos práticos da construção e interpretação de gráficos, fazendo uma crítica ajustada sobre seu poder explanatório. Um conselho e tanto. Eu convivo com gráficos o tempo todo, e esse tipo de literatura é um pequeno oásis no meio do deserto. Ele consegue ser mais claro e objetivo do que muitos especialistas na área, com um texto rico, fácil e delicioso de acompanhar.

Um tópico que não posso deixar de mencionar é sua capacidade de associar seus conselhos com nossos claros defeitos de interpretar informações. Ponto positivo para o autor, que seleciona muito bem onde encaixar seus exemplos envolvidos pelo seu profundo conhecimento sobre neurociências. Mas não se preocupe, ele sabe se exprimir na medida certa para fazer você entender onde nosso cérebro está errando, sem recorrer a uma possivelmente cansativa e desnecessária descrição técnica. Ele não quer isso, e você também não.

Preciso destacar dois aspectos muito positivos da obra. O primeiro deles é o espaço que ele dedica para destrinchar o conceito de especialista, e o nível de confiabilidade que podemos (ou devemos) conceder diante das supostas afirmações de um. É soberbo como ele aborda o assunto, mostrando que um especialista em uma área não significa que sua opinião seja razoável, ou mesmo inteligente, sobre outros temas. O segundo é que ele destrincha bem o que é ciência, e casa sua narrativa com o melhor da compreensão sobre o método científico, especialmente como critério para se avaliar a plausibilidade de qualquer argumento ou opinião que nos chega aos ouvidos.

Publicado pela editora Objetiva, o livro é pequeno e confortável, recheado de ilustrações em preto e branco, com páginas amareladas e foscas. A tipografia casa bem aos olhos e a leitura flui agradável. Quando digo que ele é fácil de ler, não estou exagerando. Li a primeira metade da obra em uma interminável fila de espera no médico, e terminei a segunda metade em um hotel, durante uma viagem. E mais um último conselho: se você é professor, eu recomendo usar os exemplos do livro em suas aulas.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

O Sentido da Existência Humana



Existem basicamente duas coisas que despertam meu interesse em uma obra: a primeira é o título e subtítulo, e a segunda é o autor. Com o tempo, você vai se acostumando com os estilos de certos escritores com os quais se depara rotineiramente, e isso lhe impulsiona quase que instantaneamente para uma obra sua, mesmo que o título não seja lá essas coisas. O inverso também vale: títulos chamativos, criativos, instigantes, feitos por desconhecidos podem valer muito a pena. É um risco que você se permite correr. Foi correndo esses riscos que eu me deparei com bons divulgadores científicos. Entretanto, quando as editoras casam em combinar um nome conhecido com um título criativo, é a senha para o sucesso da obra. Quando um dos dois soa estranho, você hesita bastante, até decidir se vale a pena ou não a leitura. Neste caso, o autor foi quem motivou meu interesse pelo livro. O título não.

Edward Wilson é um biólogo especializado em formigas, e um escritor de divulgação científica. Já deu o ar de sua graça no blog, onde você pode ler a resenha de sua outra obra clicando aqui. Wilson escreve sobre suas experiências na ciência e agrega com seus profundos conhecimentos de biologia e diversidade. É divertido acompanhar seu estilo simples e bem trabalhado, recheado de curiosidades e informações. Você se acostuma a enxergar em Wilson um escritor de assuntos biológicos. Mas não está muito preparado para encontrar um Wilson filosófico, que se propõe a explicar o sentido da existência humana. Tenho um certo receio de livros que apresentam títulos tão amplos e passíveis das mais diversas formas de intepretação, justamente porque você se depara com um terreno menos sólido. Você simplesmente não sabe o que vai encontrar pela frente. O autor me fez enfrentar o desafio. Vamos ver o que um zoólogo tem a dizer sobre o tema.

Wilson, assim como em outras obras, não desaponta. Ela está carregado de sua visão biológica do mundo, e é com base na sua experiência como biólogo, como zoólogo, que ele propõe enxergar a humanidade com bases bem mais científicas. É um ponto de vista intrigante e que valoriza as forças naturais sobre o que nos torna nós mesmos. Passeando no cerne biológico de conceitos como altruísmo, evolução social e nossas características como espécie, o autor apresenta um retrato bem mais factual, mais reducionista e mecanicista sobre a natureza humana. É neste ponto que o título, a princípio desconexo com o que se esperaria da obra deste autor, nos dá uma reviravolta: o tratado de Wilson não discorre sobre a metafísica de nossa existência, mas sim sobre um apanhado do que se conhece sobre nossa natureza.

Sem perder sua “pegada”, o autor não evita de abordar assuntos já tratados em outras obras, como a ameaça provocada pelo homem à biodiversidade, continuando sua campanha pessoal pela conscientização sobre o meio ambiente. Ou discorrendo sobre a natureza da comunicação entre os organismos. Mas neste volume, Wilson ousa traçar linhas de cunho mais pessoal, mais reflexivo, onde fica claro que seu texto reflete sua opinião pessoal, sua forma única de enxergar o mundo. Ele desenvolve seu texto sobre a natureza de nossa mente, a religião, o livre arbítrio e sobre vida extraterrestre. Aqui não espere encontrar um homem muito diferente do cientista. Sua visão foi moldada seguindo a prudência e sistemática do método científico, e ele traz as reflexões com o mesmo tato que abordaria um artigo especializado. Talvez você ache que ele pode ter exagerado ou feito extrapolações demais em algumas inferências. É possível. Mas lembre-se que a obra foi publicada em 2014, quando ele já tinha oitenta e cinco anos de idade. Noto isso em muitos cientistas hoje. A partir de determinada idade, seus textos ficam mais reflexivos, abordando assuntos mais extensos e variados. O autor toma gosto de expor seus pontos de vista, e fica menos amarrado para expressar suas opiniões. Como diria um filósofo amigo meu, “a partir dos setenta anos, eu não tenho mais receio de falar o que quiser”.

Publicado pela Companhia das Letras, o livro vem encapado num azul escuro berrante, onde o nome do autor se destaca com a letra branca contrastando sobre o fundo azul. Páginas amareladas e foscas, com tipografia e espaçamentos elegantes. Um livro confortável de pouco mais de cento e cinquenta páginas e tamanho justo para leitura em qualquer ambiente.