segunda-feira, 11 de maio de 2020

Tribos Morais - a tragédia da moralidade do senso comum



Procurar compreender como nos comportamos e como é a psicologia por trás de nossas decisões parece ter sido sempre um prato cheio para abordagens filosóficas. E a nova safra de escritores sobre o assunto no geral não tem desapontado. Este é um exemplo de que livros sobre filosofia não precisam ser necessariamente chatos e entediantes. Indo além de um texto que costuma ter uma enorme digressão quase intencional de aumentar demasiadamente o volume para lhe dar uma falsa impressão de imponência, alguns filósofos atuais parecem ter se cansado de apresentar um texto meramente reflexivo. E é este o caminho que Joshua Greene está trilhando.

Além de Filósofo, Greene tem um bom arsenal científico, como psicólogo experimental e neurocientista. A diferença que esta formação faz é que seu livro tem um sólido referencial bibliográfico, não centrado em escritos de outros filósofos ou teses puramente teóricas, mas na forma de uma bibliografia recheada de artigos científicos e capítulos de livros especializados. Sua abordagem não se limita a uma simples visão pessoal ou personalista do mundo, mas recorre a uma série de experimentos psicológicos que dão força às suas argumentações. Neste cenário, a narrativa do livro não deixa a desejar.

O título não foi muito feliz, eu reconheço. Apesar de ter sido uma tradução quase literal (na verdade, ainda pior) do que seu original inglês (que também não é uma maravilha), ele só faz mais sentido quando você começa a leitura da obra. Parece mais uma tentativa de atrair o leitor com base na estranheza da proposta, apostando que alguém vai se interessar pelo volume para tentar entender o que o autor quer dizer. Na capa posterior, o texto é mais agradável e captura o leitor mais interessado em ciência: Darwin, seleção natural e moralidade humana. Confiar neste pequeno texto é o cheque-mate, quase obrigando o leitor a comprar o livro. Na verdade, foi assim que eu o adquiri. E o que Joshua Greene tem a nos contar?

Para "amaciar" o texto, o autor nos apresenta a uma situação hipotética de tribos. Cada uma com suas características, apresentados de uma forma que seja fácil de reconhecer que elas são exemplos baseados em grupos ou comunidades reais. Cada uma com sua própria moral, onde alguns são mais caridosos, outros são mais personalistas, outros são um meio termo, outros são mais autoritários, etc. E com isto em mente, fica mais fácil de entender que muitos de nossos conflitos existem com base numa noção instintiva de que pertencemos a grupos, ou "tribos" diferentes, como as que foram colocadas no livro. E como nossos desejos ou interpretações de mundo são baseados nestes grupos, em diferentes níveis, com algum grau de concordância e discordância. E para exemplificar isso, o autor recorre aos republicanos e democratas, os partidos políticos dos EUA. Suas citações são muito elucidativas a respeito de como estes dois grupos enxergam a maneira como país deve ser conduzido.

Logo em seguida, vamos para a gênese deste comportamento. Boa parte da obra é um grande ensaio sobre nossas decisões, sobre as bases e construção de nossa moralidade, com a seleção de uma série de curiosos experimentos morais que nos fazem pensar. E alguns são excelentes mesmo. O exemplo do bonde é um de meus favoritos (utilizo nas minhas aulas, quando vou abordar sobre a ética na ciência, para mostrar que nosso comprometimento direto sobre um dilema pode confundir nossa percepção de certo e errado). E a partir destes experimentos, Greene salienta seu viés neurocientífico, abordando aspectos da mente e do cérebro, para tentar nos mostrar o que se tem até o momento sobre uma abordagem objetiva a respeito de nossas percepções, e como isso culmina na nossa moralidade.

É curioso como o autor parece mudar de personalidade ao longo do texto. De uma abordagem mais científica, agora entramos no seu "eu" filosófico, com uma extensa defesa do utilitarismo, do qual ele é um defensor confesso. Mesmo que ele tenha uma boa escrita, e consiga trabalhar o texto com certa graça, o assunto parece se estender mais do que merece. Mas depois ele retorna para concluir a obra, voltando a enfatizar sobre as bases biológicas de nosso relacionamentos sociais, e como elas deram origem a nossa visão moral.

Publicado pela Editora Record, o livro é feito de folhas amareladas e grosseiras, que dá a impressão de que o volume de quase quinhentas páginas é maior do que parece. Sua escrita é suave e, na parte filosófica, me surpreendeu por recorrer a um linguajar bem mais acessível e pouco rebuscado. Mesmo que ele precise de repetir para manter na mente do leitor uma linha específica de raciocínio, e ele mesmo reconhece isso, esta forma de apresentação de suas ideias é muito mais digerível do que autores clássicos de filosofia. Só por isso, Greene sai na dianteira com se livro. Você vai terminar a obra com um bom entendimento sobre como nossos sentimentos sobre o mundo são o resultado de seleção natural e de grupo (sua proposta para entender o dilema do bonde é fascinante), e com uma sensação diferente de que nem todas as dúvidas foram respondidas.

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