Como biólogo, a consciência é uma
das coisas que mais me fascina. Sua origem, como funciona, e como ela nos
tornou o que somos hoje. Quando encontrei esse livro, e percebi o curioso
desenho de um tentáculo na sua capa, não pude evitar de me aproximar. Na minha
graduação, eu era fascinado por moluscos, especialmente os polvos. Me
impressionava a maneira pela qual eles eram tão simples, ao mesmo tempo incrivelmente
complexos e inteligentes. Inclusive estagiei no Museu de Malacologia (ciência
que estuda os moluscos) da minha universidade. Enfim, boas lembranças surgiram,
e com certeza inconscientemente me motivaram a arriscar a leitura deste texto.
O mais curioso de tudo, é que o
livro não é escrito por um zoólogo, como seria de esperar. Peter Godfrey-Smith
é um filósofo, e historiador da ciência. Não consigo imaginar um casamento
autor-obra tão improvável nas minhas leituras recentes. Pois bem, preconceitos
à parte, vamos ver o que um filósofo tem a nos contar sobre zoologia. E cá pra
nós, eu tenho uma boa base teórica de moluscos, uma vez que também ministro
essa disciplina na graduação. Portanto, minha leitura da obra é respaldada no
meu conhecimento científico (embora não especialista) do grupo, e consigo
enxergar se houver algum disparate neste sentido. E já me preparava para o
pior: uma enxurrada de reflexões filosóficas baseadas em visões superficiais
sobre a inteligência de um polvo. Típico de textos de auto-ajuda. Já de antemão
pensei ter entrado numa fria.
Começando a obra, tive uma grata
surpresa. O livro é exatamente o oposto do que eu pensava, e fiquei muito agradecido
por isso. Escrito numa linguagem muito atraente, o autor nos apresenta uma
história concisa e nem um pouco cansativa sobre os primeiros organismos e sobre
os moluscos. As primeiras partes nos deleitam sobre as interações dos
organismos com seu meio, desde os microscópicos organismos até os invertebrados
mais complexos. O texto traz em sua narrativa uma boa dose de realidade de como
as coisas aconteceram, segundo evidências científicas, na melhor receita de
livro sobre ciência, no melhor de um livro voltado para não especialistas. E é
narrado de maneira muito agradável.
Entrando nos moluscos
propriamente ditos, adentramos a um capítulo repleto de informações sobre
evolução e origem destes animais. É um texto digno de uma aula, com direito a
esquemas evolutivos e tudo mais. Foi com grande e saudoso prazer que eu li cada
página desta parte da obra, relembrando e confirmando as informações contidas
aí com os textos básicos de cursos de biologia. E o melhor, descrito numa
linguagem bem mais atraente. E essa introdução é necessária, já que o foco de
todo o resto do texto é concentrada nos polvos. Mesmo quem não é muito interessado
por zoologia deve achar o texto agradável.
Adentramos então para o grosso da
história. O livro é narrado com uma mistura das pesquisas recentes que exploram
a inteligência e memória dos polvos, junto com as experiências de mergulho do
próprio autor, quando encontrou e passou a frequentar com assiduidade a pequena
polvópolis, um reduto relativamente incomum para dezenas de pequenos
polvos. E nesse contexto, ele desenvolve suas ideias sobre a consciência,
especialmente baseado em experimentos comportamentais realizados com esses
invertebrados. É muito interessante como ele narra essas pesquisas, criando um
contexto de curiosidade que teria motivado os cientistas a fazerem suas
perguntas. É raro encontrar livros que apresentam resultados científicos desta
maneira. A leitura torna-se muito mais agradável.
Sobre comportamento e memória,
entramos em questões mais complexas. O jogo de cores e formas que os polvos e
sépias possuem é fartamente investigado, bem como sua incrível capacidade de
solucionar problemas. O texto não desaponta nesse sentido, nem quando precisa
fazer analogias com pesquisas com outros animais. A obra não deixa de ser
elegante nem quando aborda alguns eventos polêmicos e ainda obscuros sobre a
possibilidade destes invertebrados sonharem. E aqui o autor adota uma boa dose
de prudência ao fazer suas interpretações, o que é um ponto positivo do livro.
O toque pessoal é sentido de
longe. Peter intercala suas observações amadoras com dados científicos (todos
citados na bibliografia), chegando a se aproximar emocionalmente dos animais. Ao
narrar suas aproximações dos polvos, ele cria um laço forte com os invertebrados,
testemunhando suas caçadas, brigas territorialistas, buscas por parceiros, e
torna-se capaz até de reconhece-los individualmente. Neste sentido, o livro torna-se
o que eu chamaria de experiência literária do documentário Professor Polvo,
ganhador do Oscar. E neste sentido, recomendo ambos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário