sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Outras mentes – o polvo e a origem da consciência


Como biólogo, a consciência é uma das coisas que mais me fascina. Sua origem, como funciona, e como ela nos tornou o que somos hoje. Quando encontrei esse livro, e percebi o curioso desenho de um tentáculo na sua capa, não pude evitar de me aproximar. Na minha graduação, eu era fascinado por moluscos, especialmente os polvos. Me impressionava a maneira pela qual eles eram tão simples, ao mesmo tempo incrivelmente complexos e inteligentes. Inclusive estagiei no Museu de Malacologia (ciência que estuda os moluscos) da minha universidade. Enfim, boas lembranças surgiram, e com certeza inconscientemente me motivaram a arriscar a leitura deste texto.

O mais curioso de tudo, é que o livro não é escrito por um zoólogo, como seria de esperar. Peter Godfrey-Smith é um filósofo, e historiador da ciência. Não consigo imaginar um casamento autor-obra tão improvável nas minhas leituras recentes. Pois bem, preconceitos à parte, vamos ver o que um filósofo tem a nos contar sobre zoologia. E cá pra nós, eu tenho uma boa base teórica de moluscos, uma vez que também ministro essa disciplina na graduação. Portanto, minha leitura da obra é respaldada no meu conhecimento científico (embora não especialista) do grupo, e consigo enxergar se houver algum disparate neste sentido. E já me preparava para o pior: uma enxurrada de reflexões filosóficas baseadas em visões superficiais sobre a inteligência de um polvo. Típico de textos de auto-ajuda. Já de antemão pensei ter entrado numa fria.

Começando a obra, tive uma grata surpresa. O livro é exatamente o oposto do que eu pensava, e fiquei muito agradecido por isso. Escrito numa linguagem muito atraente, o autor nos apresenta uma história concisa e nem um pouco cansativa sobre os primeiros organismos e sobre os moluscos. As primeiras partes nos deleitam sobre as interações dos organismos com seu meio, desde os microscópicos organismos até os invertebrados mais complexos. O texto traz em sua narrativa uma boa dose de realidade de como as coisas aconteceram, segundo evidências científicas, na melhor receita de livro sobre ciência, no melhor de um livro voltado para não especialistas. E é narrado de maneira muito agradável.

Entrando nos moluscos propriamente ditos, adentramos a um capítulo repleto de informações sobre evolução e origem destes animais. É um texto digno de uma aula, com direito a esquemas evolutivos e tudo mais. Foi com grande e saudoso prazer que eu li cada página desta parte da obra, relembrando e confirmando as informações contidas aí com os textos básicos de cursos de biologia. E o melhor, descrito numa linguagem bem mais atraente. E essa introdução é necessária, já que o foco de todo o resto do texto é concentrada nos polvos. Mesmo quem não é muito interessado por zoologia deve achar o texto agradável.

Adentramos então para o grosso da história. O livro é narrado com uma mistura das pesquisas recentes que exploram a inteligência e memória dos polvos, junto com as experiências de mergulho do próprio autor, quando encontrou e passou a frequentar com assiduidade a pequena polvópolis, um reduto relativamente incomum para dezenas de pequenos polvos. E nesse contexto, ele desenvolve suas ideias sobre a consciência, especialmente baseado em experimentos comportamentais realizados com esses invertebrados. É muito interessante como ele narra essas pesquisas, criando um contexto de curiosidade que teria motivado os cientistas a fazerem suas perguntas. É raro encontrar livros que apresentam resultados científicos desta maneira. A leitura torna-se muito mais agradável.

Sobre comportamento e memória, entramos em questões mais complexas. O jogo de cores e formas que os polvos e sépias possuem é fartamente investigado, bem como sua incrível capacidade de solucionar problemas. O texto não desaponta nesse sentido, nem quando precisa fazer analogias com pesquisas com outros animais. A obra não deixa de ser elegante nem quando aborda alguns eventos polêmicos e ainda obscuros sobre a possibilidade destes invertebrados sonharem. E aqui o autor adota uma boa dose de prudência ao fazer suas interpretações, o que é um ponto positivo do livro.

O toque pessoal é sentido de longe. Peter intercala suas observações amadoras com dados científicos (todos citados na bibliografia), chegando a se aproximar emocionalmente dos animais. Ao narrar suas aproximações dos polvos, ele cria um laço forte com os invertebrados, testemunhando suas caçadas, brigas territorialistas, buscas por parceiros, e torna-se capaz até de reconhece-los individualmente. Neste sentido, o livro torna-se o que eu chamaria de experiência literária do documentário Professor Polvo, ganhador do Oscar. E neste sentido, recomendo ambos.

Publicado pela Editora Todavia, o livro é pequeno e agradável para leitura casual, em fila de banco, ou em uma praça ou cafeteria. Possui folhas foscas e amareladas, com fonte muito confortável. Além de ilustrações sobre evolução dos polvos, o volume nos brinda com belíssimos encartes coloridos de sépias e polvos. É uma leitura atraente e muito enriquecedora, especialmente para quem gosta de zoologia, de quem realmente tem o talento para escrever. E a bela história dos polvos e da consciência não podia ter um narrador mais diferente, e ao mesmo tempo mais adequado.


 

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