sexta-feira, 26 de junho de 2020

Tábula Rasa - a negação contemporânea da natureza humana


       

Depois de explorar as nuances e complexidades da ainda pouco compreendida mente humana, Steven Pinker decidiu continuar sua jornada pelo enigma que o ser humano continua sendo. Só que desta vez, ele escolheu dar um salto mais adiante, e escavacar o que se sabia sobre nossa estranha e peculiar natureza. Guiado pelo milenar dilema sobre nossa condição, se somos produtos do meio ou o resultado de um determinismo biológico implacável,  era hora de fazer um bom apanhado do que existia de informação científica e encarar este embate filosófico. Nasce então mais uma obra da caneta frenética do psicólogo americano.

                O título do livro vem de uma expressão originalmente latina, que significa folha em branco. Acreditava-se, há muito tempo (e ponha tempo nisso), nos círculos filosóficos especialmente influenciados por Aristóteles, que o ser humana nascia sem nenhum conhecimento inato, que era preenchido aos poucos com suas próprias experiências e com o que lhe era ensinado. Este pensamento foi mudando de forma e interpretações ao longo das eras, nas mãos e opiniões de centenas de pensadores. E foi isso que o autor quis explorar.

                Como você bem deve lembrar, Pinker é viciado em dados e em escrever. Não espere um volume fino. Ele conserva seu estilo culto e pincelado com aquele humor sutil que poucas vezes a gente encontra. A obra começa destrinchando boa parte dos filósofos e pensadores que, se não escreveram tratados inteiros sobre o assunto, pelo menos deixaram alguma opinião a respeito do mesmo. E aqui recapitulamos uma boa dose de história de como esse pensamento influenciou e foi difundido ao longo do tempo. A questão sobre se somos produto do meio ou produto de um determinismo alcança novos patamares quando o autor nos faz refletir sobre as visões aparentemente antagônicas marcadas pela teoria do bom selvagem, popularizada pelos filósofos do Iluminismo, ou a afirmação de Thomas Hobbes, quando afirma que "o homem é o lobo do próprio homem". Se somos produtos do meio, a sociedade nos torna bons e maus? Ou somos naturalmente bons, e a sociedade nos corrompe, como afirmou Jean Jacques-Rosseau? É nesta indagação que o livro parte para seu real objetivo.

                Analisando dezenas de experimentos, tanto psicológicos como sociais, com testes de laboratório e questionários, o autor se debruça sobre nossas capacidades de aprendizado e reações inatas. É peculiar como ele dá atenção para experimentos e observações feitas com gêmeos idênticos, mas criados em diferentes ambientes, para delinear se a natureza do ambiente familiar onde cada um deles foi criado influencia tanto sua inteligência como suas aptidões. Explorando autores que opinaram a respeito da natureza biológica de nosso comportamento e do cérebro humano, como Dawkins, Dennet e Damásio, boa parte do texto é dedicada a uma visão biológica do que seriam nossos instintos mais básicos, e como alteramos nossos comportamentos diante de modificações ambientais. E no campo biológico, Pinker não poupa em páginas.

                Avançando mais, somos apresentados às questões sociais que poderiam modificar nosso comportamento e aptidões. É impensável que uma obra desta natureza não venha a tocar em assuntos mais sensíveis, como violência familiar, desigualdade social, e sistemas políticos como os implantados durante revolução comunista chinesa, que é considerado um gigantesco experimento social. Não há como negar a desastrosa tentativa de se forçar um estilo de vida planejado e imposto de cima para baixo para centenas de milhares de pessoas. E a coisa fica ainda mais complicada quando o autor nos apresenta para dilemas como a homossexualidade, por exemplo, que muitas vezes foi tratada com barbárie por aqueles que a consideravam como sendo um "problema aprendido" e que poderia ser revertida. O capítulo que trata justamente sobre estas questões mais delicadas foi adequadamente chamado de Vespeiro.

                A obra encerra no melhor estilo Pinker, que nos mostra um belo meio termo. A tábula rasa propriamente dita não existe, e o que somos é tanto resultado de forças inatadas quanto do que aprendemos e experimentamos ao longo da vida. Mas, diga-se de passagem, é um belo texto bastante informativo, como todas as outras obras.

                Publicado pela Companhia das Letras, Tábula Rasa é uma obra que vale a pena ler e ter para consulta. Impresso em folhas foscas, com tipografia confortável e elegante, o volume de quase setecentas páginas é um bom texto sobre o comportamento humano, e como a sociedade nos influencia, pelo menos em certos aspectos. Talvez não tenha tido tanto sucesso quanto o magistral Como A Mente Funciona, mas com certeza é um volume que abordou de maneira bem completa e ricamente ilustrada uma das mais curiosas nuances da natureza humana.

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